Bianca Giacomelli: Uma Jornada de Amor e Gastronomia no Borgo Mooca

Dez quilômetros não são suficientes para separar a memória da rua Comendador Roberto Ugolini e o espírito da Barão de Tatuí.

Raízes e Tradições

No Borgo, que ainda carrega Mooca no nome e hoje está na fronteira de Santa Cecília e Vila Buarque, “tutto passa” não é só a expressão tatuada numa foto imensa na parede, mas também a história de Bianca Giacomelli, a comandante da casa.

O sobrenome entrega as raízes de “uma história de Sílvio de Abreu”. Bisneta da mistura de Vêneto e Trentino, ela conta que, até hoje, a rua desse casamento abriga parte da família e muito das referências para o colorido restaurante em pleno “Centrão” de São Paulo.

Ambiente do Borgo Mooca – Ricardo Dangelo (750×1)

Mecânico, o patriarca comprou várias casas uma ao lado da outra, onde a matriarca reunia a família de dez filhos, depois muitos netos e bisnetos nos quintais separados por portões baixinhos, todos os domingos, para comer.

Elas tinham de segurar essa gente perto delas através da comida, tinham esse poder através de receitas de nhoque, de assados. Lembro disso como se fosse hoje: o cheiro já subia às 9 horas da manhã, conta fechando os olhos.

Revelação num Croissant

Viajante “desde criancinha”, Bianca cruzava o país de carro com os pais desde a infância. “A gente chegou a ir de carro até Pernambuco e de carro até Uruguai várias vezes”, lembra. Aos 11 anos, então, decidiu: fosse em hotel ou cozinha, queria trabalhar com turismo.

Aos 14, descobriu que havia, sim, uma faculdade para seu desejo, mas ela ficava na Suíça. Sem possibilidades financeiras para tanto, mirou e alcançou o Senac. E em quatro anos começou a fundação da sua trajetória.

Como telefonista no antigo Sofitel da rua Sena Madureira, um dos mais luxuosos na época (2001), começava a ter contato com um idioma (o francês), uma deliciosa culinária (a francesa) e alimentava o sonho de ir para fora (para a França, claro).

Bianca Giacomelli, do Borgo Mooca – Joa?o Perez (750×1)

Nesse momento, comi o primeiro croissant de verdade da minha vida. Aí eu lembro aquele estouro na minha boca, eu comendo aquilo. Falei: ‘puta merda, eu preciso ir pra lá’.

De Pipa a Saint-Tropez

Entre a casa na Mooca, na zona leste, a faculdade agora em Jurubatuba, o estágio na Sena Madureira e depois trabalho no Gran Meliá, que ficavam na zona sul da cidade, havia cansaço, mas um novo encantamento além da hotelaria.

Nos últimos dois anos da faculdade, conheci o Marcelo Traldi, professor e meu padrinho de tudo que aconteceu na minha vida profissional. Ele me disse ‘vai pra Campos do Jordão que vai dar certo’, lembra.

Em dois meses de estágio, chegava, finalmente, à cozinha. Lá, conheceria o chef Matheus Zanchini, com quem casaria e entraria de vez na louca vida de contas, panelas e receitas.

Antes disso, voltaria a São Paulo e escolheria outro rumo, como em cartas de tarô:

Queria morar em outro país, mas naquele momento só conseguiria sair mesmo de São Paulo. Aí peguei o Guia Quatro Rodas, abri e apareceu a praia de Pipa. Peguei meu currículo e mandei para todos os hotéis de lá. E um mexicano me respondeu, descreve.

Bianca Giacomelli, do Borgo Mooca – Ricardo Dangelo ()

Por um salário de R$ 650, fez as malas e foi. E Matheus, que trabalhava com Érick Jacquin e Alex Atala, partiu junto. E unidos, pararam em um novo hotel-restaurante de um francês.

Na Pipa, a gente ficou três anos, no final das contas. E acabou que tive a possibilidade de praticar meu francês e continuar esses meus sonhos todos que cheiram a manteiga noisette.

Forza, Puglia

O destino preparava mais uma virada à francesa, no entanto.

“Conheci um praticante de kitesurf que tinha um restaurante no sul da França, que se apaixonou pelo que fazíamos e a gente foi lá trabalhar com ele. Ganhava pouco, mas o pouco na França significa que você vai se esbaldar de comer e beber bem e ganhar experiência profissional”, relembra.

Aos 26 anos e dormindo num quartinho aos fundos do restaurante com o então marido, ainda que feliz, Bianca temia uma deportação e, após cinco anos, o casal voltou para São Paulo.

“De novo, recorri ao Marcelo Traube. ‘Prof, tô ferrada. Não juntei dinheiro, bebi, comi tudo'”, lembra. “E ele me disse que estavam procurando gente para um restaurante dentro do consulado da Inglaterra”.

Era o Drake’s Bar & Deck, do chef australiano Greigor Caisley (hoje sócio do Guarita Bar, do Guarita Burger e do Patties), que se tornou mentor de Matheus e o colocou em alguns de seus negócios de sucesso.

Enquanto isso, Bianca procurava uma outra rotina na parte mais administrativa de um hotel e assim seguiu como secretária no Grupo Posadas e depois do embaixador do México e mais adiante como secretária da empresa italiana Natuzzi.

A essa altura, já tinha guardado um dinheirinho. E decidimos empreender e compramos um trailer, que é um caminho para ter um restaurante.

De dia lidava com móveis de luxo e à noite vendia hambúrguer.

Bianca Giacomelli, do Borgo Mooca, em uma das viagens à Itália – Ricardo Dangelo (750×1)

Uma volta às raízes da Mooca viria: responsável por grupos de arquitetos que visitavam a sede da empresa na Puglia a cada três meses, Bianca aprendeu italiano. Numa dessas viagens, algumas com Matheus, conheceu o luxuoso hotel Borgo Egnazia. Citando “Cristo si è fermato a Eboli” e inspirada pelo povo forjado pela resiliência, Bianca agora sonhava com um restaurante como os da região.

Tudo isso pra mim, gastronomicamente, culturalmente, historicamente, já estava na minha cabeça desenhado. Pensava: ‘o dia que eu conseguir vai ser assim. E vai chamar….

Era hora do Borgo.

Masseria Borgo Egnazia – Reprodução (750×1)

Volta à Mooca

Num domingo entre amigos, surgiu a ideia de alugar uma casa para, finalmente, montar um restaurante. Jardins? Pinheiros? Sob a promessa de ter apoio para fazer acontecer, seria mesmo na Mooca.

O primeiro imóvel que eu olhei era uma casa azul, horrorosa, cafona. Mas pra mim fazia todo sentido, porque era atrás do Clube Juventus, o clube onde eu cresci, lembra.

No dia 12 de agosto de 2017, a casinha — agora branca — abriu e em novembro já se espalhava como Borgo Mooca entre público e crítica.

Gnocchi fritti, mini lulas e Jerez, do Borgo Mooca – Ricardo Dangelo (750×1)

Matheus comandava a cozinha, Bianca se dividia entre a gerência e o emprego na empresa de móveis e os 12 funcionários ajudavam a fazer bombar o lugar, superando as previsões mais pessimistas de uma rua não-comercial e um bairro fora do circuito de restaurantes.

Menos de um ano depois, Bianca engravidaria do primeiro filho, Giancarlo.

Trabalhei com ele na minha barriga até a quadragésima semana de gestação. Lembro que domingo eu estava com o avental que já nem fechava mais e na quarta-feira o Giancarlo nasceu.

O batismo do estilo do restaurante que era diferente da cultura de cantina veio pelo amigo Marcio Morelli, dono da importadora da Cave Léman: “Isso aqui é comida punk italiana”.

“Os italianos tradicionais tinham aversão ao Borgo, só que eles não entendiam o quanto dá pra relacionar uma base de técnica francesa com a tradição dos bons ingredientes italianos”, descreve.

Beef Wellington, do Borgo Mooca – Ricardo Dangelo (750×1)

Ares Centrais

Percebendo que o público mooquense não era o que realmente lotava a casa e que quem amava o Borgo começava a reclamar que era longe.

Em janeiro de 2020, Bianca passava a se dedicar somente ao Borgo. Em março, viria o lockdown da covid-19. “A rescisão de 10 anos, que era a poupança de Giancarlo, em uma semana virou o delivery do Borgo na pandemia”. Durante a tragédia mundial, Matheus pegou covid, foi internado e intubado.

Eu sem entender nada, funcionários tentando entender o que estava acontecendo. Aí eu fui para dentro da cozinha.

E assim seguiu Borgo, Bianca e Gigi, que foi diagnosticado com autismo neste mesmo período.

Internado em julho, Matheus voltou para casa somente em novembro. Apenas dois meses depois, estava em condições de caminhar. Neste meio tempo, a mudança para outro bairro estava definida.

Ambiente do Borgo Mooca – Ricardo Dangelo (750×1)

Estar na Santa Cecília é muito importante para nós, porque a gente queria um bairro que tivesse uma identidade Mooca. E a gente veio pra cá com as dores que existem em estar no centro de São Paulo, porque é tudo muito bonito na retórica, mas o poder público verdadeiramente tem um descaso com relação aos usuários de droga e violência. Mas seguimos.

A anarquia gastronômica, conta Bianca, está mais moderada. “Mas a comida, graças a Deus, do meu ponto de vista, segue sendo muito bem-feita”. A casinha já não é aquela branca, mas ganhou ares de superação e o que tinha cara de Puglia, agora bebia um pouco de Nápoles.

Não à toa, Bianca fez questão de pedir as famosas fotos do jovem napolitano Ciro Pipoli — a do senhor com a tatuagem de “tutto passa”, citada no início deste texto, por exemplo.

Parte da equipe do Borgo Mooca – Ricardo Dangelo (450×1)

Quando eu vim pra cá, finalmente consegui me estabelecer como restauratrice. Aquela coisa punk não ia dar pé. É um momento de estabilidade profissional, tanto em termos de aplicabilidade das técnicas que a gente tem, quanto em termos corporativos, avalia.

Desde julho de 2024 em operação solo com o Borgo (o ex-marido Matheus hoje é chef do Pope, no Rio de Janeiro), Bianca tem os pés no chão e o coração (e moradia depois de 15 anos) na Mooca, mas não se vê voltando ao bairro-natal. Além do restaurante, é na fervilhante rua santacecilier que estão o bar Bargo Mooca, comandado por Renata Nascimento, e Borgo Deli com o talento do pastaio Victor Alexandre.

Ravioli e vieiras, do Borgo Mooca – Ricardo Dangelo (750×1)

E não quer ser refém das infinidade de avaliações revestidas de crítica gastronômica ou da efemeridade dos prêmios — ainda que o Borgo esteja entre os recomendados do Guia Michelin e presente do 50 Best Discovery.

Tutto Passa, foto de Ciro Pipoli, no Borgo Mooca – João Perez (750×1)

Estou ali, atrás das cortinas, e prefiro identificar talentos e ver a cozinha crescer de maneira criativa, seguir com o meu público, trazendo um momento de alegria através da nossa comida. Aí eu volto para a minha casa para cuidar do meu filho. Isso para mim é um dia perfeito.

Diante da crocância do vol au vent, do celebrado beef Wellington (que a clientela não deixa ir embora), e do pudim de capim limão “ridículo”, como diz Bianca, os cães ladram e a caravana passa. Tudo passa.

Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2025/07/21/sozinha-nas-redeas-do-restaurante-borgo-ela-levou-a-mooca-a-santa-cecilia.htm

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