Se algum dia te pedirem um exemplo do que é um oxímoro, ou uma contradição em termos, você pode dar vários. Como a frase que diz minha instrutora de academia ao despedir-se de quem fica ali carregando toneladas de ferro: “Bom treino!”.
Ou, se formos nos ater ao mundo da gastronomia, você pode citar a forma como agora descrevem certa versão de nosso prato emblemático: “feijoada light”. Ou é feijoada; ou é “light”.
Feijoada no MASP
O assunto voltou-me à mente (e ao estômago) semana passada, ao almoçar no restaurante A Baianeira, no Museu de Arte de São Paulo. Para minha sorte, era uma quarta-feira. E o prato do dia era feijoada — escrita só assim, sem sobrenome. Nem “completa” nem “light”.
Perguntei se ela viria com as gloriosas partes do porco que lhe dão sustância, sabor e untuosidade, além da respeitosa dignidade de aproveitar todas as partes do animal que foi sacrificado para nos alimentar. A saber: nariz, orelha, língua, rabo, pé, além da habitual costelinha, lombinho, linguiças e tal.
O Público Decide
A resposta foi que a feijoada não teria isto tudo, porque não é o que o público pede.
Surpresa na Cumbuca
Mesmo decepcionado, resolvi provar, já que a chef Manuelle Ferraz não costuma dar ponto sem nó. Quando a cumbuca chegou, notei que o feijão exibia um caldo brilhante e untuoso. Só de olhar, desconfiei que algo de bom se passava. Claro, pode-se engrossar o caldo do feijão de mil formas, mas nenhum truque (farinha, maisena, gelatina etc.) dá a mesma aparência e sabor que o autêntico colágeno do animal.
E me foi então revelado o segredo. Mesmo que não servindo as partes malditas à mesa, a chef as usa sim no cozimento. E mais: penalizada, a cozinha ainda me ofertou um naco de orelha de porco e outro de pé, que encheram de felicidade meu almoço. (Embora feijoada sem língua e rabo seja sempre meio manca.)
Questão de Saúde ou Hipocrisia?
Eu entendo que algumas pessoas não possam, por razões de saúde, comer pratos mais ricos. Assim como outras simplesmente não gostem do sabor de certas partes.
Mas já constatei mil vezes que em boa parte dos casos a opção pela feijoada “light” é mais um ato de hipocrisia.
Se a pessoa não pode comer gorduras, então por que pede feijoada — com torresmo, paio e carne de porco (ah, sim, só as partes “nobres”)? Mesmo sem os cortes amaldiçoados, será um prato gordo. Aliás, é como se chama em vários cantos do Brasil: “feijão gordo”.
E quantas jamais provaram orelha ou rabo ou língua, apenas alegam não gostar, preferindo ater-se ao lombinho (como, no boi, nada arriscam além do filé mignon)?
Preconceito ou Calorias?
Parece, portanto, mais preconceito que uma questão de calorias ou sabor.
Talvez até alimentado pela lenda de que a feijoada teria nascido entre os negros das senzalas, que horror (não se preocupem, é lenda mesmo, o prato tem origens urbanas, e de quando não havia mais escravidão oficial no Brasil).
Campanha pela Feijoada Completa
Mais uma vez, então, voltarei aqui a uma velha campanha. Conclamo os restaurantes a usarem o artifício que sempre defendo: façam feijoada de verdade, com todas as partes malditas. O cliente “sensível” pode se recusar a comê-las, e pedir apenas lombinho e costela em seu prato; mas aposto uma tonelada da insossa mas elegante e cara picanha que vai adorar aquele feijão gordo, suntuoso, cheio de pecados resultantes das partes ignóbeis — e deliciosas!
Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/colunas/josimar-melo/2025/09/24/feijoada-light-e-uma-contradicao-que-beira-a-hipocrisia.htm

