Libéria: A História Não Contada da Segunda República Negra do Mundo

Nos poucos momentos dedicados à história da África na escola, talvez você tenha ouvido falar da Libéria de um jeito bacana, enaltecedor. E não à toa.

É a única nação do continente, além da Etiópia, que não foi colonizada por uma potência europeia. Foi a segunda república negra do mundo.

Um país fundado por ex-escravizados que fizeram o caminho de volta, dos Estados Unidos à África Ocidental. Por aqueles que ousaram retornar às Portas de Não Retorno. Agora, tinham um país todo seu.

Vamos combinar, é uma baita história. Mas, apesar de seu nome, que significa “país dos libertos”, e do lema nacional, que diz “O amor pela liberdade nos trouxe até aqui”, a Libéria tem uma origem um tanto mais controversa do que essas linhas heroicas querem dizer.

Começo do fim da escravidão

No início do século 19, havia um certo movimento, nos Estados Unidos, de estabelecer uma colônia na África para os negros do país. Não era uma ideia inédita.

Em 1786, os britânicos fundaram Freetown (“cidade livre”) em um território ocupado desde o século 17. A cidade começou a receber ex-escravizados do Canadá e do Reino Unido.

Em 1807, o Reino Unido proibiu o tráfico atlântico e passou a pressionar outros países a combaterem a prática. Assim, milhares de pessoas que estavam em navios negreiros interceptados no oceano foram deslocadas para Freetown.

Os britânicos transformaram o território, chamado Serra Leoa, em colônia. Freetown seria sua capital.

Muitos dos novos habitantes de Serra Leoa eram escravizados americanos que lutaram do lado dos britânicos na Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783). Estavam vivendo na miséria em Londres.

Com influência desse projeto britânico em Serra Leoa, nos EUA começou a criar corpo a ideia de realocar os negros que lutaram ao lado dos americanos — bem como aqueles que também ganharam a liberdade por quaisquer outros motivos. Com isso, em 1816, surgiu a Sociedade Americana da Colonização (ACS, na sigla em inglês).

Muitas motivações

Os membros da ACS tinham uma série de motivos, nem todos admiráveis. Uns queriam enviar os libertos para que espalhassem o cristianismo pela África. Outros queriam mandar essas pessoas para longe pois achavam que suas ideias, ou mesmo sua presença, pudessem estimular o pensamento abolicionista ou instigar revoltas no sul do país.

Sim, tinha gente na ACS que realmente queria ajudar e combater a escravidão. Mas tinha os que desejavam manter o sistema como estava.

Em 1818, uma viagem à costa africana para prospectar um local indicou a ilha Sherbro, um ponto de encontro de escravistas a 100 quilômetros de Freetown, para ser o ponto de partida do projeto. Dois anos depois, alforriados de Vermont, Virgínia e outros estados embarcaram para lá.

Não deu certo. Sherbro tem um terreno pantanoso e insalubre, e, dos 86 voluntários para estabelecerem o assentamento, 25 morreram de doenças. Em dois meses, os sobreviventes se refugiaram em Serra Leoa.

Um médico da ACS e um capitão da marinha americana buscaram outro lugar na região. Encontraram um promissor, chamado Cabo Mesurado.

A dupla negociou com as lideranças locais, que mantinham havia muito tempo um comércio lucrativo com os europeus, negociando inclusive escravizados. Era algo que tinha começado no século 15, quando os portugueses firmaram acordos de paz com os governantes africanos e passaram a se referir à região como Costa dos Grãos.

Os americanos amealharam um território de pouco mais de 60 quilômetros. Quando um dos chefes quis cancelar o acordo, foi ameaçado de levar tiro.

A cidade que brotou no Cabo Mesurado se chamava Cristópolis, uma descarada referência à motivação religiosa do assentamento. Em 1824, porém, ela ganhou outro nome, Monróvia.

A referência ficou bem mais sutil, mas só porque o tempo apagou a importância do personagem homenageado, especialmente fora dos EUA. Trata-se de James Monroe, o então presidente americano.

O início problemático da colônia

Com o passar das décadas, mais e mais navios traziam negros libertos. Nos anos 1860, Monróvia já tinha cerca de 13 mil habitantes com essa origem.

Só que havia os outros. Tanto Serra Leoa quanto a Libéria não eram uma terra de ninguém, aonde britânicos e americanos poderiam enviar quem quisesse achando que estava tudo bem.

Eles sabiam muito bem disso, tanto que tiveram que negociar as terras do Cabo Mesurado. Em Serra Leoa, desde o início houve conflitos entre os recém-chegados e o povo local, os temnes. Na Libéria, já em 1822 aconteceu o primeiro embate.

A Libéria era um território multiétnico quando os colonos chegaram. Povos como capeles, bassas, gretos, gios e manos viviam ali havia séculos — alguns já estavam na área há 8 mil anos.

Para piorar a situação, muitos dos novos habitantes não queriam estar lá. Mas foram forçados a embarcar, num esforço de embranquecimento dos EUA.

Entre esses alforriados, muitos se viam como americanos e participavam da economia. Tinha ainda os veteranos da Guerra de Independência, que criaram uma relação de pertencimento com o país que nasceu de uma luta em que eles estiveram presentes.

Mas todos estavam longe da cidadania plena. Aqueles que eram perseguidos no sul fugiam para o norte, e mesmo as maiores liberdades lá não os livravam do racismo.

Havia discriminação política, civil e social. Muitos brancos questionavam a capacidade deles de integrar a sociedade americana.

Ainda assim, havia quem queria ficar nos EUA. Achavam melhor do que atravessar o oceano e recomeçar a vida em um lugar diferente, que não lhes dizia nada — apenas uma fração dos escravizados no país tinha origem naquela região.

Independência e conflitos

No início, os líderes da colônia eram brancos. Isso mudou em 1841, quando Joseph Jenkins Roberts, filho de um fazendeiro branco com uma escravizada, foi eleito governador.

A ACS atravessava uma crise financeira e, com apoio britânico, os colonos conseguiram a independência, em 1847. Roberts virou presidente, e a Libéria se tornou a segunda república negra do mundo, seguindo o exemplo do Haiti.

Além do Reino Unido, França e outras nações europeias reconheceram rapidamente a independência. Mas os EUA, não.

Só 15 anos depois o país aceitou a decisão da antiga colônia. Em 1862, pouco antes dos EUA darem início ao processo que aboliria a escravidão, o presidente, Abraham Lincoln, reconheceu que a Libéria, enfim, era livre.

Mas a influência americana seguiria firme e enorme. O novo país adotou uma constituição inspirada na dos americanos, com um judiciário independente e eleições para o Congresso. Assim como nos EUA, era uma democracia para poucos: só os américo-liberianos e seus descendentes tinham plenos direitos, e eles eram, é claro, a minoria do topo da pirâmide.

Os américo-liberianos eram muito diferentes da população originária. Cristãos, falavam inglês, vestiam-se como europeus. Transformaram os outros em mão de obra barata, e isso levou a mais conflitos.

No século 20, empresas americanas começaram a explorar a borracha, o ferro e os diamantes do país. No fim da Segunda Guerra, a Libéria ainda era, orgulhosamente, um dos quatro únicos países independentes da África.

Mas havia um preço. Segundo o historiador Martin Meredith, autor de diversos livros sobre o continente, a Libéria era “uma república decadente, pouco mais do que um feudo da Firestone, que era proprietária de suas plantações de borracha”.

Guerra Civil e pacificação

Em 1980, um sargento semianalfabeto chamado Samuel Doe liderou uma revolta em Monróvia, derrubando mais de um século de dominação da elite américo-liberiana. Doe executou o presidente, William Tolbert Jr., e instaurou uma ditadura brutal no país. Por trás de Doe, havia o apoio dos EUA.

Em 1989, Charles Taylor, ex-membro do governo, liderou a luta armada no país. No ano seguinte, uma dissidência de seu grupo matou Doe.

Em meio ao embate brutal entre os grupos étnicos que lutavam entre si, Taylor não conseguiu tomar o poder. Em vez disso, atravessou a fronteira e levou o caos aos campos de diamante de Serra Leoa.

Os dois países foram devastados, e suas respectivas guerras civis, com cenas horrendas de crianças soldados, reduziram Freetown e Monróvia a favelas fumegantes. A situação só começou a melhorar nos anos 2000.

Um longo e complexo processo de pacificação se mantém desde então na Libéria. Isso passa, necessariamente, por olhar para a própria história.

Nos últimos anos, o governo do país está investindo em locais com potencial turístico. Um deles é uma ilhota em Monróvia chamada Providence, tida como marco zero da colônia.

O prefeito de Monróvia, John Siaffa, declarou que Providence é um local histórico, onde os fundadores do país se encontraram pela primeira vez com os povos tradicionais da Libéria. Ele enfatizou que explorar turisticamente a ilha seria uma boa fonte de renda para o país e lembrou que nações como Gana e Senegal já vêm trabalhando nesse resgate histórico.

A iniciativa conta com o apoio dos EUA. Os antigos laços, criados com uma inspiração de ideais de liberdade (mas amparados em motivações muitas vezes racistas), seguem firmes.

Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/colunas/terra-a-vista/2025/10/06/boa-acao-por-que-os-eua-deram-um-pais-inteiro-para-escravizados-libertos.htm

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