Se tem uma mentira histórica em que é fácil acreditarmos é essa que diz que o ódio reina no Oriente Médio “desde sempre”. É basicamente um efeito Mandela da geopolítica.
O passado pacífico
A Palestina, por exemplo, era um território mais estável e pacífico quando estava sob controle do Império Otomano do que hoje. Gaza não era sinônimo de horror.
Mas há nuances aí. Afirmar que muçulmanos e judeus viviam em plena harmonia na Idade Média também é um mito, segundo um artigo do historiador Mark Cohen, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos.
“Religiões monoteístas eram, por natureza, mutuamente intolerantes”, escreveu. Quer dizer, na prática, o seguinte: vocês podem viver na minha cidade, fazer negócios conosco. Mas serão sempre cidadãos de segunda classe.
Porém, ao comparar essa realidade com a vivida pelos judeus na Europa, há boas doses de verdade aí, ele reconhece. O convívio entre muçulmanos e judeus não era um conto de fadas, mas estava muito longe do horror da Europa da Inquisição.
Ou seja, desconfie dos comentaristas que adoram afirmações categóricas como “desde sempre”. Tudo é mais complexo.
Uma amizade esquecida
Irã e Israel, protagonistas da pior guerra de todos os tempos da última semana, podem não ter relações diplomáticas e viver em hostilidades desde 1979. Mas antes era bem diferente.
A Biblioteca Nacional de Israel postou recentemente em suas redes sociais uma foto que, aos olhos de hoje, parece coisa de IA alucinada. A imagem mostra uma bandeira do Irã hasteada na casa, em Jerusalém, onde funcionava o antigo consulado iraniano no país.
A foto é de 1947, antes até da criação do Estado de Israel, no ano seguinte. O Irã, de fato, foi uma das primeiras nações a reconhecer o novo país.
Na época, o Irã não era uma república islâmica opressora, mas uma monarquia ditatorial. Em 1951, o xá Reza Pahlevi abandonou o país, após o primeiro-ministro, Mohammad Mussadeq, ter nacionalizado as empresas petrolíferas estrangeiras.
Os anos seguintes foram turbulentos. O Ocidente boicotou o petróleo iraniano, em 1953 um golpe de Estado (bancado por Reino Unido e Estados Unidos) depôs Mussadeq e Pahlevi voltou para casa.
Mas a parceria com Tel Aviv continuou tranquila. Em 1960, o xá oficializou e tornou pública a relação amistosa entre Irã e Israel, segundo o historiador Jean-Pierre Filiu em um artigo no jornal francês “Le Monde”.
O mundo estava na Guerra Fria. As rixas entre capitalistas e socialistas eram mais importantes, na época, do que diferenças religiosas. “O monarca iraniano rompeu, assim, com a solidariedade islâmica devido ao seu ferrenho anticomunismo, numa época em que a Guerra Fria entre Washington e Moscou estava cada vez mais levando os movimentos nacionalistas árabes para o campo soviético”, lembra Filiu.
Para os israelenses, a parceria também era estratégica. David Ben-Gurion, fundador de Israel e primeiro-ministro do país em dois mandatos que somaram 13 anos, estimulou a aliança como uma forma de resistência antiárabe.
Em suma, o Irã (que não é árabe, sempre bom lembrar) era pró-capitalismo ocidental, assim como Israel. Se os vizinhos muçulmanos árabes estavam debandando para o lado soviético, era melhor estreitar os laços com os capitalistas da região.
Para Israel, ter uma grande nação não-árabe e pró-Ocidente era uma ótima. As diferenças religiosas ficavam pouco relevantes nesse cenário.
Visita e colaboração
Em 1961, Ben-Gurion visitou Teerã. Os israelenses se comprometeram a oferecer inteligência militar em troca de petróleo. Mas eis que, em setembro de 1962, um terremoto devastou a região de Gazvim, no noroeste do país.
Gazvim (ou Qazvin, Kasvin…) é uma importante cidade histórica do país, tida como capital da caligrafia no Irã. Certo, podemos lembrar de caligrafia apenas como aulas chatas e dolorosas para o punho na escola, mas, no Irã, e no mundo islâmico em geral, ela é uma forma de arte elevada.
Na milenar história do Irã, Gazvim teve momentos de protagonismo. Foi capturada por árabes e destruída por Hulagu, o conquistador mongol neto de Gêngis Khan.
No século 16, foi capital do Império Safávida, uma das grandes potências de seu tempo.
Mas ela nunca esteve em pé de igualdade de cidades mais célebres, como Nishapur ou Isfahan. A falta de fontes de água era um problema crônico.
Em 1921, Gazvim serviu de ponto de partida para o primeiro dos golpes que mudaram os rumos do país, quando o general Reza Khan derrubou o sultão Kajar. Em seu mandato, ele se autocoroou xá e mudou o nome do país de Pérsia para Irã.
Na Segunda Guerra, britânicos e soviéticos ocuparam o país. O xá, que simpatizava com os nazistas, abdicou em favor do filho, Reza Pahlevi.
Nesse período, Gazvim perdeu importância econômica. O terremoto em 1962 só piorou a situação.
Centenas de vilas na região foram destruídas. Algumas, reduzidas a escombros. Pelo menos 12 mil pessoas morreram, dezenas de milhares perderam suas casas.
Reconstrução e amizade
Safia Asfia, que nos anos 1930 se tornara o mais jovem professor da Universidade de Teerã, foi escolhido pelo xá para liderar um grande plano de modernização do país. Debaixo de seu guarda-chuva estava, inclusive, o incipiente programa nuclear do Irã.
Após a catástrofe, Asfia firmou uma parceria com uma empresa estatal israelense chamada Tahal, especializada em desenvolver sistemas de irrigação e de distribuição de água. O trabalho em Gazvim serviria de modelo para outras regiões do Irã.
Segundo um documento divulgado pela Biblioteca Nacional de Israel, Tel Aviv enviou um time de profissionais gabaritados para trabalhar sob a coordenação do governo iraniano e reconstruir uma vila totalmente destruída, Khuznin.
Liderado por Arie Eliav, o time da Tahal, ao lado de trabalhadores enviados pelas Nações Unidas, coordenou diversas missões em Gazvim. Após as tarefas emergenciais, eles tinham quatro objetivos claros:
1 – Levantamento geral da área de Gazvim para planejar o desenvolvimento da região.
2 – Preparar um plano para toda a zona do terremoto, incluindo a construção de novas vilas.
3 – Introduzir novas culturas e montar áreas de demonstração para ajudar os moradores locais sobre práticas agrícolas aprimoradas.
4 – Treinar engenheiros iranianos.
Sim, alguns dos israelenses mais talentosos da época capacitaram engenheiros iranianos, em um programa comandado pelo homem que também liderava o programa nuclear do Irã. Pode ser impensável hoje, mas, “falando historicamente, a colaboração era um lugar comum: Israel tinha uma relação muito próxima (para não dizer controversa) com o regime do xá”, segundo um artigo no site da Biblioteca Nacional de Israel.
Na primavera de 1963, por exemplo, dezenas de estudantes e professores de geologia, israelenses e iranianos, conviveram, trabalharam, estudaram e até fizeram trilhas juntos. No documento da Tahal, percebia-se o clima de respeito e cordialidade:
“Deseja-se enfatizar o fato de que, embora os engenheiros israelenses se esforçassem para transmitir conhecimento aos seus colegas iranianos, eles próprios também aprenderam muito com os iranianos e foram muito auxiliados por eles. Não há dúvida hoje de que, sem seu trabalho dedicado, tanto em campo quanto no escritório, as equipes israelenses não teriam alcançado os resultados que alcançaram…”
Ao longo de três meses, o esforço mútuo construiu centenas de casas para os desabrigados. O trabalho da Tahal foi considerado bem-sucedido, e Arie Eliav chefiou uma missão semelhante na Nicarágua, em 1972 (ele também estivera em outra do tipo, no Marrocos, em 1960).
O fim
Em 1978, corrupção, crise econômica e reformas pró-Ocidente minaram a popularidade do xá. No ano seguinte, a crise se agigantou e a oposição se uniu em torno do aiatolá Ruhollah Khomeini.
Reza Pahlevi fugiu do país. Khomeini, que vivia no exílio, retornou, assumiu o governo e virou líder supremo do Irã. Com a Revolução Islâmica, que deu uma guinada repressiva no país, a hostilidade passou a guiar a relação com diversas nações árabes, além dos EUA – e de Israel.
Safi Asfia, o líder do programa de desenvolvimento durante o regime do xá, foi preso. Segundo relatos, ele passou cinco anos de xadrez estudando italiano, biologia molecular e ciência da computação, dando aulas de francês e consertando relógios e aparelhos eletrônicos.
Asfia morreu em Teerã, em 2008. Pouco depois, em 2009, o Movimento Verde tomou as ruas, revoltado com uma eleição tida como fraudulenta. O Twitter, na época uma rede social que não havia sido tragada pela extrema direita, foi um importante catalisador da rebelião.
Eliav, chefe da missão da Tahal, entrou para a política e passou décadas promovendo a paz com os palestinos. Nos anos 1970, renunciou ao cargo de secretário-geral do Partido Trabalhista após a legenda recusar reconhecer a existência do povo palestino.
Ele morreu em Tel Aviv, em 2010. Ainda era o começo do segundo, longo e cada vez mais radical mandato de Benjamin Netanyahu.
Os tempos são outros.
Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/colunas/terra-a-vista/2025/06/29/devastado-por-terremoto-em-1962-ira-teve-ajuda-de-um-pais-amigo-israel.htm