A Pedra Amaldiçoada de Délhi: Mistério e Maldição

Era só mais um dia de trabalho para Peter Tandy, conservador-restaurador no Museu de História Natural de Londres, naquele dia frio de dezembro, em 1972. ‘My Ding-a-Ling’, de Chuck Berry, dominava as rádios quando Tandy se deparou com uma caixa de madeira.

Ele decidiu abrir e viu que havia outra caixa dentro. Abriu e a cena se repetiu, de novo e de novo.

A sensação de bonecas russas terminou na sétima caixa, quando já ficou claro que não se tratava de algo trivial. Dentro dessa última, estava escrito: ‘safira púrpura de Délhi’.

Tandy logo viu que a inscrição estava errada. Não era uma safira roxa, mas uma ametista, que é uma variedade violeta do quartzo e não é rara como a safira. Ainda assim, o material chamava a atenção.

A pedra estava rodeada por um tipo de anel de prata com inscrições de símbolos alquímicos e astrológicos e duas pedras em forma de escaravelho egípcio, além de um envelope com uma carta. Agora a coisa estava ficando séria.

A mensagem datava de outubro de 1904 e trazia a assinatura de Edward Heron-Allen. Você e eu poderíamos perguntar ‘o famoso quem?’, mas Tandy sabia quem era: um grande intelectual da Inglaterra vitoriana.

Heron-Allen era um verdadeiro polímata. Escritor e cientista, especializou-se na fabricação de violinos, em quiromancia e em literatura persa: traduziu para o inglês a obra do genial Omar Khayyam, outro polímata, grande matemático, astrônomo e poeta persa do século 11.

O texto de Heron-Allen era grave. Alertava que, quem quer que fosse o futuro possuidor da ametista, que tomasse cuidado, pois ela era amaldiçoada. O erudito fez o favor de explicar por quê.

A saga da pedra maldita

Segundo a carta, a pedra viera da Índia, em um ano e lugar propícios para os britânicos darem uma amostra de seu lendário talento para a pilhagem e a exploração. Em 1857, a situação estava tensa em Bengala.

Os cipaios eram soldados mercenários a serviço da Companhia Britânica das Índias Orientais (EIC, na sigla em inglês), a empresa que comandava a colonização na Índia. Anos de mal-estar se acumulavam no que eles consideravam uma falta de respeito a sua cultura, religião e estilo de vida.

A EIC demonstrou tal falta de tato ao introduzir um novo mosquete que usava cartuchos de papel. Para carregar a arma, os soldados deviam rasgar esses cartuchos com os dentes, porém circulava o rumor de que o óleo usado nas peças continha gordura de vacas (sagradas para hindus) ou de porcos (impuros para muçulmanos).

Foi o estopim para a revolta. Os cipaios mataram mulheres e crianças em Cawnpore e os ingleses responderam com outras atrocidades, incluindo tortura e estupro, além da criativa e visualmente impactante maneira de executar prisioneiros ao amarrá-los em bocas de canhões.

O conflito terminou no ano seguinte, com um saldo de muitos milhares de mortos (os números são incertos). Os indianos se livraram da EIC, mas não dos britânicos. A própria Coroa assumiu o controle de boa parte do país, em um remanejamento que trouxe mais caos e repressão.

Foi nesse contexto que um certo coronel chamado W. Ferris saqueou a pedra preciosa de um templo dedicado a Indra, divindade do clima, das estações e do ar no hinduísmo, em Cawnpore. Sua ideia era levá-la a Londres e levantar uma boa grana com a venda.

Mas, segundo a narrativa de Heron-Allen, o coronel se deu mal. Ninguém se interessou pela gema e, para piorar, Ferris entrou em uma espiral de maus negócios que quase arruinou sua família.

Suspeito de que a pedra pudesse ter algo a ver com a maré de azar, ele a emprestou a um amigo. O homem se suicidou e Ferris, que pelo visto não devia ser amigo de verdade de ninguém, ficou em choque.

Seu filho herdou a pedra, e a maldição voltou com tudo. Também quase foi à falência e ainda por cima pegou uma misteriosa doença.

O jovem Ferris decidiu se livrar da pedra ao dá-la a alguém que, ele supunha, seria imune a superstições do tipo. Um homem de ciência, um intelectual, alguém como… Ele mesmo, nosso autor, Edward Heron-Allen.

Advogado que estudava turco, grafologia, filosofia budista e até cultivo de aspargos, Heron-Allen poderia anular a maldição ao simplesmente ignorá-la, acreditava Ferris. Só que nem o renomado erudito estava a salvo.

Heron-Allen sentiu que a vida amorosa e profissional entrou em queda livre. Então, para tentar barrar o suposto poder da falsa safira, enfiou-a em um anel que pertencera a um famoso astrólogo e inseriu as duas ametistas em forma de escaravelho egípcio, que Tandy encontraria décadas depois no arquivo do museu.

Aparentemente, deu certo. A situação se acalmou. Um amigo até se empolgou e pediu a joia emprestada. Mas então a maldição despertou: ele caiu em tudo que era desgraça e logo a devolveu.

Desesperado, em 1903 Heron-Allen decidiu jogar a pedra em um canal. A felicidade voltou ao lar, sua segunda filha nasceu, o trabalho prosperou.

Três meses depois, tal qual Jim Carrey fracassando ao tentar se livrar da máscara, a peça voltou misteriosamente às mãos de Heron-Allen. Bem, não tinha muito mistério.

Um pescador encontrara a pedra e tentou vendê-la a um joalheiro, que era amigo da família e logo a reconheceu. O bom homem tratou de devolvê-la a seu dono.

Heron-Allen não sabia mais o que fazer, e a fama da joia crescia em seu círculo de amizades. Um desses amigos, cantor, resolveu arriscar a sorte e pedir a pedra emprestado. Devolveu-a um tempo depois, em pânico e sem voz. Não conseguia mais se apresentar.

Sem saber mais o que fazer, Heron-Allen cerrou a joia nas sete caixas, acrescentou a carta com a advertência e a história da maldição, assinou e a trancou no banco. Acrescentou ainda que ela deveria permanecer assim, isolada, por pelo menos 33 anos após sua morte.

Ele morreu em 1943, aos 81 anos. Uma vida cheia de comendas, prêmios e reconhecimentos por sua contribuição a diversos campos do conhecimento.

Isso não impediu sua própria filha de desrespeitar o testamento. Menos de um ano depois, ela doou a falsa safira ao Museu de História Natural.

A peça ficou esquecida no acervo até ser redescoberta quase 30 anos depois por Peter Tandy. A partir de então, ela ganhou notoriedade.

Erudito e mestre do marketing?

A história narrada por Heron-Allen é rocambolesca demais para ser verdade, escreveu a espanhola Ana Trigo, historiadora da arte, no livro ‘Joyas Malditas’ (sem edição brasileira). Segundo o museu, de fato, o relato não é real.

Além de distribuir seu talento em muitas áreas, o homem também tinha tempo para escrever ficção. E aqui entra a história da pedra.

Usando o pseudônimo Christopher Blayre, Heron-Allen publicou, em 1921, um conto chamado ‘The Purple Sapphire’. Trigo explica que o próprio museu londrino fez o dever de casa e procurou saber mais sobre as pessoas citadas na carta, além de checar as histórias contadas por aqueles que procuraram a instituição para contar que os incidentes narrados se assemelhavam com causos contados em suas próprias famílias.

Todas essas pessoas vinham de Sussex, região histórica no sul da Inglaterra onde Heron-Allen morou por mais de 30 anos. Acredita-se que ele tenha tido bastante contato com oficiais que serviram na Índia. Eles teriam contado a ele histórias que inspiraram o conto.

Talvez, a fim de dar verossimilhança ou para montar uma criativa peça publicitária para promover a narrativa, ele tenha inventado tudo isso. Como uma safira roxa é muito rara, arrematou uma ametista e a enfiou nas sete caixas, maldições inclusas.

Trigo cogita ter sido uma mera pegadinha com a família. ‘Não podemos saber, embora seja verdade que é difícil imaginar alguém do prestígio de Edward Heron-Allen, membro da Royal Society de Londres, idealizando algo do tipo.’

Para o Museu de História Natural, a narrativa é toda ficcional, serve apenas como um tempero para o que ele considera uma das peças mais intrigantes de seu acervo. Em todo caso, segundo Trigo, um conservador da instituição chamado Richard Savin, passou por uma experiência inquietante.

Responsável por trasladar o objeto do museu para um simpósio da Sociedade Heron-Allen, grupo criado em 2000 para estudar vida e obra do pensador, Savin declarou que, ao voltar para casa, algo estranho aconteceu. Uma tempestade surgiu de repente, com raios caindo tão perto do carro que sua esposa implorou para que ele se livrasse da pedra.

Em outras ocasiões em que precisou transportar a joia para fora do museu, ele também sentiu a ‘maldição’. Em uma vez, caiu de cama seriamente. Mas Savin insistia que foram coincidências.

Hoje, a história oficial e os marcos arquitetônicos relembram os crimes cometidos pelos cipaios em Cawnpore, a atual Kanpur. A Igreja Memorial de Kampur foi erguida em 1875 em honra às tropas britânicas que se sacrificaram no motim de 1857. Dentro dela, uma escultura homenageia as mais de 200 mulheres e crianças inglesas massacradas no local.

Em todo o país, porém, há poucos marcos dedicados aos indianos massacrados no conflito. Mesmo que o número de indianos mortos tenha sido muito maior que o de ingleses.

A falsa safira, mesmo que não tenha sido surrupiada da cidade, acaba sendo também uma história elucidativa sobre o neocolonialismo. O museu aparentemente vem debatendo a decolonização nos últimos anos, mas essa maldição ainda vai demorar muito para passar, se é que vai.

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