A Polêmica dos Restos Mortais de Hernán Cortés no México

Em fevereiro deste ano, Claudia Sheinbaum, presidente do México, fez uma declaração bastante firme relacionada à história do país. Ela disse que ainda estava em tempo de a Espanha pedir perdão pelas atrocidades cometidas durante a colonização.

500 Anos de Cuauhtémoc

A fala ocorreu em meio às celebrações dos 500 anos da morte de Cuauhtémoc, o último imperador asteca independente. Houve outros imperadores depois dele, mas eram governadores fantoches, apontados pelos espanhóis.

É um assunto que mexe com os brios de ambos os países. A situação é complexa, mas uma pilha de ossos, e o tratamento dado a ela ao longo do tempo, resume a treta.

Os Restos de Hernán Cortés

Os restos mortais de Hernán Cortés, o conquistador que liderou a vitória sobre os astecas em nome da Espanha, ainda são uma questão delicada. Dos dois lados do Atlântico, políticos à esquerda e à direita defendem, e defenderam, soluções bem diferentes para o impasse.

Que Lugar é Esse

A Igreja de Jesus Nazareno tem os traços típicos da arquitetura colonial do século 17. Localizada no centro histórico da capital mexicana, ela conta com murais do grande pintor mexicano José Clemente Orozco e fica no local onde, acredita-se, Cortés encontrou o imperador Montezuma pela primeira vez, em 1519, simbolizando o choque de mundos que se desdobraria na colonização.

Uma placa simples, próxima ao altar da igreja, indica que ali está sepultado Hernán Cortés de Monroy y Pizarro Altamirano. Mas nem mesmo essa simples informação (o nome completo do sujeito) está lá. A placa se limita a dar o texto “Hernan Cortes 1485-1547” e um brasão.

A Saga do Morto

Cortés morreu longe do México. Deixou este mundo em 1547, em Castilleja de la Cuesta, na província espanhola de Sevilha.

Existem poucos documentos que mostrem o que esse homem – um daqueles poucos sobre os quais podemos afirmar, sem medo de exagerar, que mudou a história da humanidade – pensava de fato. Mas ele foi claro a respeito de onde queria ser enterrado.

Cortés deixou por escrito seu desejo. Queria um túmulo no mosteiro que ele mandou construir em Coyoacán, hoje um bairro histórico na capital mexicana.

Só que a obra não tinha saído do papel quando ele morreu. Então o conquistador acabou enterrado em Sevilha. Em 1566, 19 anos depois, foi trasladado para a Nova Espanha (nome do vice-reino espanhol nas Américas Central e do Norte).

Primeiro, a urna com os ossos de Cortés ficou em Texcoco. No século 17, foi para a Cidade do México, mais especificamente a Igreja e Convento de São Francisco. Em 1716, ganhou um novo túmulo no mesmo templo.

Em 1794, finalmente, Cortés acabou no local desejado por ele. O mosteiro incluía o Hospital da Conceição e Jesus Nazareno, o primeiro da capital, seguindo suas orientações.

A transferência contou com um cortejo fúnebre, acompanhado pelo badalar dos sinos e uma longa homilia exaltando o papel evangelizador de Cortés. A urna ganhou um monumento grandioso, que fazia jus ao conquistador que levou a civilização para aquelas terras selvagens, como apregoava a narrativa oficial.

Um Novo Olhar sobre uma Pilha de Ossos

O México conquistou a independência em 1821, após 11 anos de guerra. Não surpreende que o túmulo do homem que iniciou aqueles 300 anos de colonização voltasse ao debate público.

O Congresso Nacional chegou a debater se derrubava o mausoléu. Decidiu, em 1823, que os ossos fossem transferidos para o subsolo do hospital, longe de profanadores e, ainda mais importante, longe do público em geral.

Treze anos se passaram e, com os ânimos mais acalmados, a urna pôde voltar à superfície. Mas nada de exaltação, muito pelo contrário. Ela ficou em um nicho na parede da igreja contígua ao hospital.

O então ministro das relações exteriores e a embaixada espanhola no país realizaram um novo sepultamento, em uma cerimônia secreta. Mas, para a população, Cortés estava fadado ao esquecimento.

Entre os séculos 19 e 20, acreditou-se que os ossos desapareceram de vez. “Usando metáforas pertinentes sobre o papel da Espanha no México, algumas pessoas disseram que o túmulo havia sido saqueado, enquanto outras afirmaram que o país vinha sendo roubado há muito tempo”, diz uma reportagem do jornal espanhol “El País”.

Até mencionar o nome de Cortés era considerado tabu. Mas, na prática, as pessoas não ligavam tanto para ele, porque o país estava mais preocupado com o futuro, com as relações que estava construindo com os Estados Unidos, segundo o jornal. A Espanha era passado.

Em 1882, uma proposta causou indignação entre os mexicanos: transferir os restos de Cortés para o Panteão dos Heróis da Independência. Não fazia sentido do ponto de vista histórico e, do político, era uma medida no mínimo ousada.

Isso pouco importava, porque quase ninguém sequer sabia onde de fato estavam os ossos dele. Somente alguns poucos guardiães tinham essa informação: alarmados diante da polêmica que a proposta causou, deixaram a urna em um lugar ainda mais escondido na igreja, segundo a biografia de Cortés escrita por Esteban Mira Caballos.

No Século 20, Mais Confusão

O México tinha rompido relações diplomáticas com os espanhóis em 1939, quando o regime nacionalista de Francisco Franco venceu a Guerra Civil e mergulhou a Espanha em anos de ditadura e pobreza. Mas o governo republicano, derrotado e exilado, manteve relações com os mexicanos.

Em 1946, a embaixada revelou a localização exata de Cortés. No mesmo ano, a ossada teve a identidade confirmada. Com ela, voltou também a celeuma.

Teve quem propôs atirar os restos no oceano. Muitos sugeriram ao governo se livrar de uma vez daquele inconveniente um tanto mórbido.

Indalecio Prieto, um líder republicano que vivia no exílio na Cidade do México, declarou que o país era “o único nas Américas onde a raiva da conquista e da dominação ainda não tinha passado. Matemos e enterremos isso agora, tiremos vantagem dessa oportunidade maravilhosa”.

Ter revelado o paradeiro dos restos mortais do conquistador não foi “uma oportunidade maravilhosa”. Os mexicanos provaram que Prieto estava certo em pelo menos uma afirmação: sim, eles ainda tinham muita raiva.

Ninguém quis saber de um novo monumento ou uma tumba mais digna. Cortés permaneceu encerrado na parede da igreja. Ganhou apenas uma placa de bronze com seu brasão de armas e o ano de nascimento e morte – é o que está lá até hoje.

O desprezo era tão latente que, no ano seguinte, não houve nenhuma missa ou memorial em celebração do tetracentenário da morte de Cortés. Passou em branco.

“Da mesma forma que o descobriram, o esqueceram”, resumiu o jornal online “El Español”.

Quatrocentos anos depois, e após ter sido enterrado nove vezes, Cortés teve o tratamento que mereceu – talvez não na opinião de todos, mas na da maioria dos mexicanos.

Visões sobre Cortés

Desde que foi eleita a primeira presidente do México, em 2024, a esquerdista Sheinbaum mais de uma vez se manifestou sobre um pedido de desculpas que a Espanha deve ao país, ao seu ver. É um assunto que continua criando rusgas.

Não importa que a Espanha não seja mais uma ditadura de extrema direita nem que o México não seja mais governado pela centro-direita do Partido Revolucionário Institucional (PRI), como foi por muitas décadas. Cortés ainda significa confusão política.

Em 2021, o partido de ultradireita espanhol Vox exigiu que o governo mexicano limpasse a tumba de Cortés e que organizasse homenagens em razão dos 500 anos da conquista do México. As respostas variaram de risadas a sugestões de envio da urna à Espanha.

O governo federal não deu bola. À época, o presidente mexicano era Andrés López Obrador, padrinho político de Sheinbaum. Ele também declarara que a Espanha devia um pedido de desculpas ao seu país.

“A visão predominante sobre Cortés na cultura popular é que ele era mau, brutal e terrível”, disse o historiador mexicano Ilán Selmo ao “New York Times”. “Mais pessoas visitariam seu túmulo se não fosse esse o caso, mas ele nem aparece na maioria dos guias de viagem.”

Porém, historiadores põem de lado essa visão maniqueísta. Alguns o tratam hoje mais como um oportunista político, que se aproveitou das divisões que já existiam no México para se aliar a povos inimigos dos astecas. Ele não era um conquistador solitário e sanguinário que conquistou o país sozinho.

No hospital fundado por ordens do conquistador, existem muito mais homenagens a ele. Entre pátios floridos visitados por beija-flores, há um busto, uma estátua e grandes pinturas celebrando sua vida.

Trata-se de uma instituição sem fins lucrativos. A administração reconhece que a estreita ligação com esse personagem histórico dificulta sua situação financeira: “As pessoas acham que, ao doar para o hospital, estão doando para Cortés”.

Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/colunas/terra-a-vista/2025/11/17/magoa-antiga-mexico-e-espanha-brigam-por-tumulo-de-morto-ha-478-anos.htm

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