14º13’N, 16º52’O
Mbodiène
M’bour, Thies, Senegal
Parece que era bom demais para ser verdade e, realmente, nunca será. Akon anunciou recentemente que sua cidade futurista, inspirada em Wakanda, sustentável, hipertecnológica, movida a criptomoedas e que revolucionaria a economia e o turismo do Senegal, não vai sair do papel.
O Projeto Nunca Andou
Divulgado antes da pandemia, o projeto sequer chegou perto de parecer que estava andando. Naufragou em escândalos e deixou a região onde seria instalado em um futuro incerto.
A galeria dos megaempreendimentos falidos centrados em criptomoedas só aumenta. Mas a história desse não-lugar e seu patrono midiático vale ser contada.
Quem é Akon
Se você não estava em um retiro pesado, sem acesso à cultura pop americana nos anos 2000, conhece pelo menos um dos diversos sucessos que Akon emplacou entre 2004 e 2008. Em 2007, ele chegou a entrar no Guinness como o artista que mais vendeu ringtones no mundo, em uma época em que o toque do celular era um atributo importante de demarcação de personalidade.
Com o tempo, Akon foi se distanciando da música. A mistura de R&B, hip-hop e pop ficou para trás, e ele passou a ser mais falado como empresário.
Não que ele tenha abandonado a carreira que lhe deu fama. Mas parecia não dar mais tanta bola para ela – seu show no Rock in Rio, ano passado, foi cheio de trapalhadas e descaradamente carregado no playback.
A vida de empreendedor, por outro lado, parecia estar a todo vapor. Em 2014, ele lançou um projeto para levar energia solar a regiões isoladas de 15 países africanos.
Foi o primeiro grande passo em direção ao seu continente de origem. Akon pode ter nascido em St. Louis, Missouri, e ter iniciado a carreira em Atlanta, Geórgia, mas ao lado da cidadania americana está também a senegalesa. Seu nome de batismo é Aliaune Damala Bouga Time Puru Nacka Lu Lu Lu Badara Akon Thiam.
Em 2018, Akon anunciou a construção de uma cidade planejada no Senegal. A empreitada podia ter toda a pinta de cidade inteligente, mas com aquela carinha de culto à personalidade típica dos ditadores. A economia seria baseada em uma criptomoeda criada para tal, a akoin.
E o nome da cidade? Akon City.
Wakanda Furada
O megaprojeto de US$ 6 bilhões, conforme anunciado, teria parques, condomínios, estádio, uma universidade, resort em frente ao mar, prédios de escritórios, shopping, escola e um grande hospital. Tudo sustentável, seguindo a cartilha, para atrair investidores e turistas.
Em 2020, Akon declarou que pretendia se aposentar ali. Atrás dele, viriam multidões de imigrantes senegaleses, atraídos por empregos que não existiam quando eles, ou seus pais, deixaram o país. Até uma indústria de cinema, Senewood, seria construída.
As imagens de divulgação da cidade ganharam prédios futuristas, cheios de linhas curvas arrojadas, rendendo-lhe a comparação com o país fictício da Marvel.
Mas, se Wakanda fica em algum lugar misterioso e fictício da África Oriental ou Central, a localização de Akon City estava à vista de todos. Próxima à vila de Mbodiène, ocuparia uma área de 800 hectares doada pelo então presidente do Senegal, Macky Sall.
É uma região onde, na visão do artista-empreendedor, um sistema financeiro descentralizado poderia fazer a diferença. Akon argumentava que o blockchain tornaria os africanos menos dependentes (ou abandonados) dos sistemas tradicionais.
Uma reportagem da rede americana CNN na época mostrava a empolgação de startups com o tema. Em um encontro de especialistas em tecnologia, palestrantes argumentavam que, se a grande maioria das transações monetárias no continente são feitas em espécie, é por causa das altas taxas bancárias.
Tal falta de maleabilidade e ineficiência seria uma oportunidade para o blockchain, a tecnologia na base das criptomoedas, em que os serviços financeiros ocorrem sem intermediários. Cheio de falas com aparentes boas intenções, o evento prometia solucionar a inclusão financeira da África.
Infelizmente, só um rascunho de canteiro de obras virou realidade. Em 2021, Akon anunciou uma nova cidade, em Uganda, enquanto os problemas no Senegal começavam a vir à tona.
Naquele ano, o executivo da música Devyne Stephens, ex-parceiro de Akon, entrou com um processo de US$ 4 milhões contra o artista, alegando que ele o devia por um acordo firmado em 2018. Segundo uma reportagem do “Guardian”, o advogado de Stephens argumentou que Akon City e a akoin tinham todas as marcas características de um esquema de pirâmide.
Akon negou as alegações, mas em 2022 pagou US$ 880 mil como parte do acordo. Os problemas no Senegal, em todo caso, continuaram rolando.
O projeto tinha o aval da Sociedade para o Desenvolvimento e Promoção da Costa e das Zonas Turísticas (Sapco, na sigla em francês), que deu um ultimato ao cantor. Se Akon City não andasse até 2023, ela encerraria o contrato.
O enrosco também envolvia a própria Sapco e o governo senegalês. As terras reservadas para o empreendimento haviam sido cedidas em 2009 para o desenvolvimento turístico da região, marcada por praias de águas claras e picos de surfe.
Mas, passados mais de dez anos, muitos antigos donos, desapropriados pelo governo, não receberam a compensação financeira acordada, de acordo com a imprensa local. “Meu problema não é com Akon, mas com a Sapco”, declarou um deles ao “Guardian”.
Em 2023, não havia nada além de uma estrutura de boas-vindas e de um centro para jovens, financiado por Akon como parte do contrato firmado com os moradores de Mbodiène. Em 2024, quase nada mudou. Este ano, o fracasso evidente foi reconhecido.
Fiasco e Futuro
Na semana passada, a Sapco anunciou que o projeto de Akon City foi cancelado: “Felizmente, um acordo foi alcançado entre a Sapco e o empreendedor Alioune Badara Thiam (Akon). O que ele está preparando conosco é algo realista.”
Em sete anos, Akon City só entregou promessas vazias a uma comunidade que acreditou no projeto. Não havia estradas, escolas, energia elétrica, muito menos empregos, oportunidades e prédios futuristas. “Nada mudou”, resumiu um morador para a rede BBC.
A criptomoeda do cantor também se mostrou um pesadelo para seus investidores. “Ela não estava sendo administrada corretamente, assumo a total responsabilidade”, declarou Akon.
A akoin parecia condenada desde o princípio, pois havia dúvidas até quanto à legalidade de sua operação. A moeda do Senegal é o franco CFA, usado em diversos países do continente e regulado pelo Banco Central dos Estados da África Ocidental, que, como tantos outros bancos centrais do mundo, se opõe às criptomoedas.
A falta de financiamento e as possíveis fraudes, pelo menos segundo o ex-parceiro de Akon, foram cruciais. Mas a região continua com potencial, por isso o governo ainda acredita em desenvolver ali uma nova cidade, mesmo que com um projeto muito mais pé-no-chão.
Isso porque, em 2026, a capital senegalesa, Dakar, sediará os Jogos Olímpicos da Juventude. De Mbodiène a Dakar é uma viagem de apenas duas horas de carro.
Mas a decepção com Akon City deixou marcas. O líder comunitário Michel Diome, que se encontrou com o cantor várias vezes, acreditava que a cidade futurista poderia ser uma mina de ouro para uma economia que entrou em decadência com a queda da indústria pesqueira.
“Todo chefe de vila desejaria um projeto desses. Estamos esperando trabalho para homens, mulheres e jovens em Mbodiène”, disse Diome ao “Guardian”.
O tempo passou e a empolgação com as criptomoedas amoleceu. Na África de 2025, muito ainda se debate se elas são tão revolucionárias assim.
O mais dolorido dessa história é o simbolismo que ela poderia carregar, se tivesse dado certo. O próprio Akon chegou a dizer que mais que um polo de empregos, a cidade seria um santuário para afroamericanos a fim de se reconectarem com suas raízes no continente.
Mbodiène fica a meros 70 quilômetros de Goreia, ilha onde funcionava um entreposto do tráfico atlântico de pessoas escravizadas. Acadêmicos discutem a real importância dela na economia da escravidão, mas a ilha cravou seu lugar no imaginário popular ao aparecer em músicas de um punhado de artistas, alguns deles descendentes da Diáspora Africana.
O senegalês Youssou N’Dour, um dos melhores cantores do mundo segundo a “Rolling Stone”, fez uma música sobre o local. Gilberto Gil, em francês, compôs “La Lune du Gorée”. O próprio Akon a cita na música “Senegal”.
Se tivesse dado certo, sua Akon City poderia se aproximar de Wakanda mais por esse significado do que pelas linhas arrojadas que seus arranha-céus nutridos a criptomoedas teriam. Uma pena.
Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/colunas/terra-a-vista/2025/07/14/lembra-do-akon-cantor-quis-construir-uma-wakanda-real-e-deu-tudo-errado.htm