Em Bornholm, uma ilha ao sul da Dinamarca com cerca de 40 mil habitantes, uma placa verde com letras brancas chama a atenção. Ela diz: “Temos ótimos vinhos. Abrimos das 10h às 20h”. E, embaixo, um detalhe curioso: “se não estivermos, leve a sua garrafa e deixe o dinheiro”.
Confiança na Dinamarca
Intrigado, decidi ver de perto. Como assim “deixe o dinheiro”? O caminho leva a uma casa sem portão e a uma garagem onde está a adega: Den Flaskenhalsen Peter Pa. A expressão em dinamarquês descreve uma situação em que alguém está preso ou bloqueado, como se estivesse dentro do gargalo de uma garrafa.
Entrei e comecei a olhar as garrafas: rótulos de diferentes partes do mundo, com ênfase na Europa. Cada vinho tem um preço e, ao lado do que deveria ser um caixa, há uma estrutura de acrílico transparente para depositar o dinheiro, incluindo moedas.
Se não tiver dinheiro, sem problema: há um aviso com um número de conta bancária para fazer a transferência. Tudo parecia surreal, até que o Peter do nome apareceu.
História de Peter Pa
Peter trabalhava como sommelier em restaurantes locais até que seu filho nasceu com uma deficiência rara, demandando muito cuidado. Ele pediu demissão para estar mais próximo do garoto e decidiu abrir sua loja de vinhos na garagem.
Curioso, perguntei se as pessoas realmente deixavam o dinheiro e se nenhuma garrafa sumia. “Aqui, são normais esses negócios assim, baseados estritamente na confiança”, ele me disse. Comprei um vinho, paguei diretamente a ele e saí.
Ele não exagerava: de pães a cereais, de queijo a qualquer tipo de alimento, muitas prateleiras e armários estão distribuídos pelas pequenas estradas da ilha. As pessoas passam, pegam o que querem, deixam o dinheiro e vão embora.
Compras sem laços
Parecia inocente demais, algo possível apenas em um lugar tão civilizado. Mas a verdade é que as compras baseadas na honestidade do cliente têm virado uma tendência.
Dos supermercados e lojas de conveniência com caixas estilo “pegue e pague” a hotéis sofisticados com seus Honest Bars, como o Rosewood São Paulo, que tem uma seleção de destilados à disposição dos hóspedes, que se servem e anotam o número de seus quartos para pagar depois.
Ao que parece, há um esforço de confiar no outro na hora das compras. Ou, ao menos, um movimento de clientes que preferem se sentir livres nesses momentos.
Uma pesquisa da empresa de comportamento NCR Voyix revela que o autoatendimento tem se consolidado nos EUA: 77% dos entrevistados preferem o self-checkout pela rapidez.
O estudo também aponta que cresce o interesse por tecnologias que simplificam a experiência, como mais quiosques de autoatendimento e pagamentos digitais.
A mensagem parece ser que velocidade, personalização e conveniência são os pontos que os consumidores buscam, esperando mais inovação e experiências sob medida na hora de comprar.
É uma mudança de paradigma para um comportamento que sempre tivemos diante de alguém que estava ali para receber por aquilo que queríamos comprar.
Em um mundo cada vez mais digital e automatizado, as pessoas se acostumaram a interagir menos com o outro. Nos supermercados, muitos celebram a mudança de poderem fazer suas próprias compras e pagar por elas de forma independente.
Dá para confiar?
Na prática, porém, o resultado muitas vezes tem sido filas longas, clientes frustrados e funcionários sobrecarregados, responsáveis por monitorar até seis caixas automáticos ao mesmo tempo.
Mas o que intriga é a relação de confiança: pensar se, mesmo com implementos para tornar as coisas mais fáceis, vamos ser capazes de acreditar que o consumidor pode ser realmente honesto na hora de comprar.
Parece que não tanto assim: a rede inglesa Tesco instalou câmeras sobre alguns caixas de autoatendimento que, em caso de erro, exibem um replay ao estilo VAR, mostrando quando um item não foi escaneado corretamente.
A tecnologia busca reduzir furtos, mas rapidamente virou meme. Um vídeo que mostra uma lata de atum sendo “anulada” já soma mais de 3,5 milhões de visualizações. Muitos clientes criticaram a novidade, classificando-a como invasiva e prometendo abandonar o autoatendimento.
A medida surge em meio a um cenário de aumento recorde nos furtos no Reino Unido: segundo dados da polícia, houve um salto de 20% em 2024, somando mais de 516 mil ocorrências, enquanto o British Retail Consortium estima um prejuízo de 2 bilhões de libras para o setor no último ano.
O dilema do autoatendimento
Entre a confiança quase ingênua das pequenas ilhas e a vigilância quase total dos grandes centros urbanos, o autoatendimento revela um dilema do nosso tempo: buscamos rapidez e liberdade, mas não conseguimos nos libertar do peso da desconfiança.
No fim, resta esperar para ver se o futuro das compras vai mais para uma lata de atum “anulada” ou um cofrinho de acrílico na beira da estrada, sem ninguém esquecer de deixar disponível o troco.
Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/colunas/rafael-tonon/2025/09/04/pegue-e-pague-honestidade-do-cliente-e-tendencia-entre-bares-e-mercados.htm