Esqueça aquelas filas intermináveis de pessoas de chinelo e traje de banho esperando por um hambúrguer seco enquanto equilibram um copo de plástico com um líquido azul quase radioativo. Os chefs dos cruzeiros querem apagar essa imagem da sua mente quando você pensa nos buffets a bordo dos navios.
Transformação Gastronômica
Troque a ideia do bandejão das universidades por restaurantes sofisticados, com mesas cobertas de toalha branca, garçons atenciosos e sorridentes e até sommeliers que te ajudam a harmonizar o vinho com o prato. Nos últimos anos, as operadoras de cruzeiros passaram a apostar na gastronomia como forma de atrair um novo nicho de passageiros mais exigentes e, claro, mais endinheirados.
O objetivo é finalmente deixar para trás o ‘coma quanto quiser’ que dominou os navios populares no passado.
Um navio, 12 restaurantes
Hoje, as grandes empresas contratam chefs com passagens por cozinhas francesas premiadas, investem em fornecedores locais que possam entregar ingredientes frescos quase todos os dias e constroem adegas com os melhores vinhos do mundo.
Escrevo este texto a bordo do Allura, o novo navio da Oceania Cruises, uma das melhores e mais luxuosas companhias de cruzeiros de um mercado que não para de crescer. A projeção é de crescimento de mais de 12% ao ano até 2032, alcançando US$ 23 bilhões.
O navio, com cerca de 246 metros, tem capacidade para até 1.200 passageiros em ocupação dupla, atendidos por aproximadamente 800 tripulantes. Nas contas do chef responsável, há 1 chef para cada 8 passageiros.
O Allura conta com 12 restaurantes, entre eles o Jacques, que tem menu assinado pelo famoso chef francês Jacques Pepin. No menu, estão clássicos como lagosta à Thermidor e o filé Rossini — um medalhão de carne coberto por foie gras.
A sommelier filipina que ofereceu o vinho do dia tinha em torno do pescoço um tastevin, clássico objeto de prata usado por sommeliers e enólogos para analisar a cor e a limpidez do vinho. A ideia é provar que ninguém aqui está de brincadeira.
No menu dos outros restaurantes, salmão selvagem finlandês e até carne de red Angus vindas de pastagens livres. O café da manhã tem panquecas e todos os tipos de ovos, e diariamente pela manhã chega uma lista de petiscos que o mordomo pode trazer no final da tarde: tábua de queijos franceses, morangos cobertos com chocolate belga ou asinhas de frango em molho picante.
Experiências Exclusivas
Uma das novidades do navio recém-construído é uma creperia que funciona o dia todo, como se estivéssemos na praça de alimentação de um shopping de luxo — com a diferença da vista para o mar, claro.
Na cafeteria, baristas profissionais fazem shakeratos e lattes, enquanto a sorveteria produz sabores novos todos os dias, de pistache a um sorbet de grapefruit com Campari.
Ápice do luxo
Ainda que um dos restaurantes funcione em esquema de buffet self-service, para facilitar a vida dos passageiros que passam o dia nas piscinas de hidromassagem ou que chegam das excursões, os outros seguem o estilo sentar e escolher, com mais atendentes por mesa do que muitos restaurantes caros de São Paulo.
O Red Ginger oferece comida nikkei peruana, apostando na tendência que essa culinária ganhou no mundo. O Toscana tem pratos feitos com pasta produzida em moldes de bronze na Itália, enquanto o Grand Dining Bar exibe decoração estilo Titanic, com lustres portentosos e pratos que vão de sopa de cebola a atum em crosta de ervas.
Como se não bastasse, o navio ainda oferece aulas de cozinha: para entreter os passageiros, a chef Kathryn Kelly ensina receitas e faz trivias sobre ingredientes e cortes em um espaço tipo cozinha-escola que deixaria muito cozinheiro vermelho de inveja.
O bar principal, chamado Martinis, tem uma carta onde o clássico coquetel homenageado pode ser feito com mais de trinta vodkas e gins diferentes, vindos de todas as partes do mundo.
Há harmonizações de vinhos biodinâmicos e uma experiência Dom Pérignon, com pratos criados para acompanhar especialmente safras do renomado Champagne. Também há degustação de uísque Macallan de distintos anos e um cardápio especial de Bloody Marys criados por bartenders só para o navio.
Melhor que os em terra firme?
Para alimentar milhares de passageiros em cerca de 28 viagens por ano, organiza-se uma verdadeira operação de guerra: são 7 milhões de ovos, 45 toneladas de filé mignon e uma equipe de 150 pessoas para selecionar, lavar, picar, cozinhar e servir tudo isso.
Além da Oceania, outras empresas também passaram a apostar na culinária como bandeira para atrair os passageiros, contratando curadores gastronômicos que atuam também fora do navio. Eles ajudam a definir os menus mas também as experiências que acontecem nos destinos atracados — de visitas a produtores de azeite a tours gastronômicos com chefs locais por mercados.
A bordo, a comida virou uma moeda importante porque é preciso alimentar as pessoas 24 horas por dia, em três refeições principais e todos os mil momentos entre elas: navegando em alto-mar, beber e comer são as principais atividades — ainda que a academia, super bem equipada, estivesse cheia em muitos momentos.
O principal objetivo é criar restaurantes atrativos sobre as águas, que alimentem mas que, acima de tudo, causem aquela boa impressão que as “experiências” gastronômicas precisam nos dias de hoje.
É uma mudança de narrativa, quase. De bandejões flutuantes a menus assinados por chefs estrelados, as companhias de cruzeiro querem que você esqueça episódios como o infame “poop cruise”, onde a comida — quando havia — resumia-se a sanduíches frios distribuídos em corredores tomados por cheiro de esgoto e brigas por álcool liberado.
Agora, o que se vende é luxo, curadoria e degustações sensoriais, como promete o jornal de bordo que chega todos os dias na minha cabine. No fundo, a disputa já não é apenas com outros navios, mas com a terra firme.
Com turistas cada vez mais viajados e exigentes, a ambição é que, embarcado em um navio como o Allura, o passageiro se pergunte se o restaurante que o espera em terra firme tem mesmo algo melhor a oferecer do que um filé Rossini com uma taça de Dom Pérignon e vista sem fim do oceano. Spoiler: muitas vezes, não tem.
Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/colunas/rafael-tonon/2025/07/24/esqueca-o-bandejao-comida-de-navio-pode-superar-a-de-restaurante-estrelado.htm