Culev Larsze e a Conexão Entre Realidades: Uma Jornada de Descobertas

53º35’S, 70º56’O
Marco “Sin Palabras”
Punta Arenas – Magalhães e Antártica Chilena, Chile

Todo mundo conhece pelo menos um homem dono da verdade. Mas com quantas mulheres assim você topou na vida?

Culev Larsze não era dona da verdade, porque, afinal, ela sabia melhor do que ninguém que a verdade não é algo cuja posse alguém pode declarar. A verdade vinha a Culev, simples assim, pois ela irradiava argumentação.

Como Aquiles banhado no Estige, ela deve ter mergulhado em águas que lhe deram algum superpoder nos debates. Culev Larsze dominava altercações, reinava nas mesas-redondas, brilhava em qualquer contenda.

Porém, em algum momento de sua até então vitoriosa história, ela se mostrou ainda mais parecida com Aquiles. Seu calcanhar foi a petulância.

Culev Larsze conseguiu deixar até os deuses sem argumento. Mas então ela lançou um sorrisinho irônico, e isso foi sua ruína.

De repente, perdeu o dom da linguagem. As palavras, que antes vinham até ela com uma naturalidade que assombrava todo mundo, agora lhe escapavam.

Recostada em uma colina, Culev Larsze olhou para seu reflexo em uma poça d’água. Viu-se lutando para falar, mas não conseguia nem expressar a solidão que a encobriu.

A mulher que ajudou tantas pessoas com seu poder de argumentação agora se via arruinada. Uma longa jornada para se reerguer começava.

Que mundo é esse?

Punta Arenas - Natalia - stock.adobe.com (750x1)

Culev Larsze faz parte de uma realidade paralela que tem alguns pontos de contato com o nosso mundo. Eles estão espalhados por todos os continentes e integram um ousado projeto narrativo.

Kcymaerxthaere, ou apenas Kcy, é um universo fictício criado pelo artista Eames Demetrios em 2003. Esse mundo se conecta ao nosso por meio de alguns pontos específicos, representados por 143 instalações em 30 países.

A maioria desses pontos de contato são placas de bronze que contam uma história de Kcy, mas que aconteceram na nossa dimensão, no exato lugar (ou nas proximidades) do local onde a placa foi instalada. O barato está aí: é um típico marco informativo, como placas em monumentos, mas cujo texto fala de acontecimentos fictícios de uma realidade paralela.

Demetrios já era um cineasta reconhecido quando decidiu que a obra não deveria ser um filme ou um livro, mas uma mostra global que convida o público a se deslocar para explorá-la. Nos tipos mais tradicionais de mídia, nós desvendamos a história apenas por meio dos personagens e narradores. Mas, com Kcy, ele quis criar algo em que o mundo, o cenário, viesse antes dos enredos.

A maioria dessas placas fica em locais remotos, mas acessíveis. Afinal, é preciso haver um equilíbrio entre lugares que resistam ao tempo e à especulação imobiliária, que contem com o apoio ou pelo menos a aceitação da comunidade local e que, o mais importante, instiguem o público a caçar essas histórias.

É o caso do marco de Culev Larsze. Fica em uma trilha, 53 quilômetros ao sul de Punta Arenas, cidade no extremo sul chileno, no Estreito de Magalhães.

“Se você se deparar com um marcador de Kcymaerxthaere sem contexto, provavelmente o ignorará sem pensar duas vezes”, escreveu Laura Kiniry, uma jornalista da BBC que acompanha há anos a saga. “Mas, para aqueles familiarizados com o universo paralelo de Demetrios, cada visita é como coletar uma peça de quebra-cabeça – um que literalmente se estende ao redor do globo.”

É uma ousada empreitada, uma caça ao tesouro com pretensões literárias, num nível de nerdismo e espírito exploratório para bem poucos. Se você nunca ouviu falar de Kcy, Kiniry reconhece, é mais que normal.

Mas é curioso notar que o mote da obra de Demetrios às vezes funciona sem querer, me parece. Aconteceu este ano.

A placa de Culev Larsze, que se chama “Sin Palabras”, encontrou, involuntariamente, uma dessas conexões com a nossa realidade (ou “mundo linear”, como chama o autor) por meio de um estudo realizado ali perto. No local trágico da heroína sem palavras, arqueólogos querem resgatar a voz dos yámanas, antigo povo indígena da Terra do Fogo.

Um dicionário salvador

Indígenas Yamana - William Singer Barclay/acervo do Museu Marítimo de Ushuaia (750x1)

Em um estudo divulgado em uma publicação científica de arqueologia, pesquisadores noruegueses argumentam que um velho dicionário pode ajudá-los a desvendar mistérios que rondam os yámanas (ou yaganes). O yagan, idioma desse povo, foi extinto há não muito tempo.

Em 2022, a etnógrafa chilena Cristina Calderón, a última falante nativa da língua, morreu, aos 93 anos. Mas o trabalho de um missionário no século 19 pode dar nova vida ao yagan, de certa forma.

Para os cientistas noruegueses, o dicionário tem potencial para ajudar a entender diversos aspectos do dia a dia dos yámanas séculos atrás. Além disso, a mesma abordagem pode servir para que pesquisadores estudem outros idiomas (sejam eles vivos, extintos ou dormentes) e entendam antigos modos de vida de uma série de comunidades, segundo uma reportagem do site “Nautilus”.

Isso graça ao trabalho do inglês Thomas Bridges, que chegou à Terra do Fogo, o arquipélago dividido entre Chile e Argentina na ponta sul do continente, em 1856. Ele acompanhava seu pai, um missionário anglicano, que poucos anos depois foi para as Malvinas.

Bridges ficou, mas seguiu a carreira do pai. Como missionário, acabou convivendo com os yámanas por 30 anos.

Em sua missão evangelizadora, documentou o idioma e a cultura do povo. Traduziu o Evangelho de Lucas para o yagan e compilou 32 mil palavras para seu dicionário.

Nos anos 1880, a população local despencou à medida que os europeus chegavam à Terra do Fogo. Com suas doenças, contra as quais os indígenas não tinham anticorpos, 90% dos yámanas morreram.

O declínio seguiu firme no século 20, e o preconceito fez o resto do serviço sujo de dizimar a cultura yámana. “Hoje, os indígenas ainda confeccionam pontas de arpão tradicionais com ossos de baleia e cestas de vime, principalmente para vender aos turistas”, segundo o “Nautilus”. “Mas eles não podem mais navegar livremente em canoas ou barcos, devido a restrições da Marinha.”

Fiordes do Chile - tarasan - stock.adobe.com (750x1)

Era justamente essa íntima, intensa e complexa relação com o mar que caracterizava os yámanas. Eles e seus antepassados se adaptaram e sobreviveram nesse ambiente de frio rigoroso e ventos inclementes por milhares de anos.

Foram os primeiros humanos a chegarem ao Cabo Horn. São o povo mais meridional do planeta. Ninguém viveu mais ao sul do que eles.

Caçavam leões-marinhos e focas com arpões. Pescavam, faziam ornamentos, eram nômades, tinham ritos específicos.

O mar era tão central na vida que não existia apenas uma palavra para ele. É “tāralömbi” quando a água está perfeitamente calma. “Mötālömön” quando ela está mais encrespada. Se o vento agita a superfície de maneira que não dá para ver o movimento dos peixes, o nome é “döna”.

O interesse científico pelos yámanas é antigo, mas existe relativamente pouco material para o trabalho arqueológico. Daí a importância do dicionário. As poucas centenas de yámanas vivos hoje, entre elas uma neta de Calderón, também estão trabalhando nesse resgate.

“Podemos pensar na linguagem como sítios arqueológicos em uma paisagem”, afirmou o arqueólogo Jo Sindre Eidshaug, principal autor da pesquisa. Para ele, o idioma se estabelece em uma paisagem, assim como artefatos físicos, à medida que as pessoas desenvolvem conhecimento e vocabulário nos locais onde vivem.

O trabalho de Bridges pode ter anotado recursos, práticas e saberes que não foram preservados na forma de registro arqueológico. É o caso, por exemplo, da fabricação de canoas.

Há poucos artefatos relacionados à fabricação delas. Mas as palavras registradas no dicionário aprofundam o conhecimento.

Uma árvore específica fornecia a madeira, cuja fibra era usada na costura. Talos de sementes viravam uma espécie de almofada impermeável, um tipo de terra cimentava essas costuras e pedaços lisos de casca de madeira, instalados nas bordas superiores, protegiam os remadores de machucar as mãos.

São detalhes que não sobreviveram fisicamente. Mas existem no dicionário.

A obra mostra também a influência do ambiente em aspectos como a passagem do tempo. Os nomes das estações indicam a época em que uma espécie de fungo amadurece, em que a casca de um tipo de árvore se solta ou em que os caranguejos adultos carregam filhotes.

Há limitações, porém. Idiomas mudam com o tempo, então é improvável que o dicionário esclareça questões mais profundas, como as relacionadas às origens dos primeiros caçadores-coletores da Terra do Fogo, cerca de 7 mil anos atrás.

Mas dicionários são portas importantes para explorar outras culturas. Por meio deles, podemos ver como diferentes povos interagem, influenciam e são influenciados pela natureza ao seu redor.

Para os yámanas contemporâneos, isso pode ajudá-los a resgatar e preservar suas origens. É mais do que apenas revelar algumas curiosidades.

Nem é preciso ser uma lenda da argumentação como Culev Larsze para saber. Pessoas sensatas e sensíveis sempre lembram: as palavras têm poder.

Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/colunas/terra-a-vista/2025/08/04/dicionario-velho-e-esquecido-pode-salvar-o-povo-do-fim-do-mundo.htm

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