Uns vinte anos atrás, ao visitar a maior crítica de vinhos do mundo, Jancis Robinson, em sua casa em Londres, ela me recebeu, como de hábito, com uma taça de Champagne. “Quero que você prove este”, ela me disse.
Provei. Pensei que não era o melhor que eu já tinha bebido, muito pelo contrário, mas antes de dar minha opinião percebi o olhar maroto da minha anfitriã… e perguntei na lata, “o que é isto?”.
Ela deu risada: “Acredite se quiser, mas isto é vinho inglês… e até dá pra beber, não??”, ela disse, mas mesmo assim tirou a taça da minha mão e trocou por uma de Champagne de verdade. Ufa!
O Vinho Inglês
Vinho inglês era então pouco mais que uma piada. Mas, como conversamos aquele dia, o aquecimento global estava subindo as temperaturas do sul da Inglaterra, que se aproximavam daquelas que a região de Champagne tinha décadas antes. O que tornava viável, pela primeira vez, fazer ali no sul da ilha os vinhos que os franceses faziam no norte do continente.
Corta para 2025. Vinte anos depois, na mesma Londres, aconteceu um dos concursos de vinhos mais destacados do mundo, o International Wine Challenge. E para espanto geral, pela primeira vez nos 41 anos da prova, o melhor espumante do mundo desta vez não veio de Champagne, mas da… Inglaterra!
O Nyetimber 2016 Blanc de Blancs, da região de Sussex. Mesmo país, aliás, de onde veio o vencedor de outra categoria, a de melhor vinho em seu primeiro ano de produção (Kingsthorne 2017 Seyval Blanc Brut, também um espumante).
Surpresas do Outro Lado do Mundo
Parece que o mundo do vinho está de cabeça pra baixo? Bem, pode pegar o globo e realmente virá-lo ao contrário para encontrar outra região vencedora no mesmo certame, lá no outro extremo do planeta.
Sabe a Chardonnay, aquela uva emblemática da região francesa da Bourgogne, onde há séculos produz vinhos brancos primorosos? Pois bem, este ano, no mesmo certame, o vencedor de melhor vinho desta uva é produzido na… Tasmânia! Sim, na parte da Austrália mais próxima do polo sul. Como se não bastasse, o mesmo vinho — o Chardonnay 2023 da Tolpuddle Vineyard —, foi consagrado também o melhor vinho branco deste ano.
Novos Horizontes Vinícolas
Se os resultados parecem surpreendentes, pode ir se acostumando. Porque entre os dois extremos geográficos hoje abundam vinhos de qualidade de origens que eram praticamente ignoradas pelos consumidores mundiais poucas décadas atrás.
Podem ser regiões que na verdade têm uma história vinícola antiga, mas terminou sendo esquecida pela emergência dos grandes vinhos da Europa Ocidental, ou países relativamente novatos no mundo do vinho — como Líbano ou Geórgia; Inglaterra ou Bolívia; Eslovênia ou Moldova; Minas Gerais ou Bahia…
Minas e Bahia? Sim, acredite.
O fato é que o mundo do vinho vive hoje a influência de dois fatores relativamente novos. Por um lado, o já mencionado aquecimento global, que vai mudando o perfil de várias regiões: algumas, já produtoras, possivelmente terão que mudar para uvas que convivam melhor com o calor; outras, que eram muito frias, estão agora podendo entrar no clube dos produtores.
O outro fator é o avanço no conhecimento das técnicas de vinificação. Até o fim do século 19, antes de Pasteur, os produtores nem sequer tinham noção do que fazia a uva virar vinho (a fermentação). E tinham poucos recursos para interferir no ciclo de produção do vinho: era o tempo em que dependiam de forma crucial da qualidade do solo e da benevolência do clima.
Já hoje em dia… se a fermentação libera muito calor, por exemplo, colocam-se cintas de água fria nos tanques e modula-se a temperatura no ponto desejado e controlado por computadores.
E se quisermos fazer vinho bom em Minas ou na Bahia, mas chove muito na época da colheita… basta um brasileiro inventar o sistema de dupla poda (como fez o engenheiro agrônomo Murilo de Albuquerque Regina) e pronto: subverte-se o que se faz no mundo todo (colheita no verão) e colhem-se as uvas no inverno. Resolvido.
O Futuro do Vinho
Com estas e outras, daqui a pouco você poderá estar fazendo vinhos decentes no quintal de casa…
Um bom agrônomo vai dizer qual a uva adequada para o solo que você tem ao lado da churrasqueira (para não ter erro), e vai cuidar para que ela cresça bem — e até mesmo sem agrotóxicos no cultivo.
Um bom enólogo vai dizer se as leveduras que passeiam entre suas samambaias (se não forem de plástico) são adequadas ou não para o tipo de vinho que você quer — se não forem, é só comprar as cepas que hoje existem no mercado, desenvolvidas para cada perfil de vinho.
E por aí vai.
Seu vinho não será o melhor do mundo — como a maioria dos vinhos feitos hoje mundo afora em lugares antes considerados improváveis.
Mas boa parte destes, feitos naqueles países e regiões que você desconhecia, são no mínimo vinhos corretos, prazerosos (se você perder o preconceito e a desconfiança, vai gostar).
E, despretensiosos, podem ser bem mais baratos que os campeões do mundo. Sem por isso deixarem de cumprir seu papel de nos brindar com o prazer e a companhia de uma boa bebida.
Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/colunas/josimar-melo/2025/10/15/de-motivo-de-piada-a-melhor-do-mundo-a-redencao-dos-vinhos-da-inglaterra.htm
