Em maio, durante seu discurso inaugural como presidente da Macedônia do Norte, Gordana Siljanovska-Davkova, do partido nacionalista VMRO-DPMNE, chamou o país de ‘Macedônia’. Isso não foi um deslize, mas um ato político bem calculado.
O novo governo já havia indicado, durante a campanha, a intenção de remover a localização geográfica do nome do país. Esse movimento reacendeu uma disputa que parecia resolvida em 2018.
Naquele ano, a então Macedônia aceitou mudar seu nome para Macedônia do Norte em um acordo com a Grécia, que prometeu não mais bloquear a entrada do país na União Europeia (UE) e na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Por décadas, os gregos barraram as tentativas dos macedônios de ingressar nesses blocos.
Mas agora, em 2024, o novo governo deixou claro que pode rever essa situação. A Grécia demonstrou insatisfação com a atitude, e seu embaixador no país abandonou o discurso inaugural da presidente.
A questão não é apenas o nome, mas toda a construção da identidade nacional de ambos os países, especialmente em relação à figura de Alexandre, o Grande.
História e Identidade
A Macedônia do Norte é um pequeno país balcânico, sem saída para o mar, com uma área de 25 mil quilômetros quadrados. Esse território integrou o antigo Reino da Macedônia na época de Filipe 2º, no século 4º a.C. Passou, a seguir, ao domínio de romanos, bizantinos, búlgaros e sérvios, até que os otomanos o conquistaram, junto com boa parte dos Bálcãs, no século 16.
O controle turco acabou em 1913 e a área considerada a Macedônia histórica foi repartida entre gregos, sérvios e búlgaros. A porção sérvia integrou o Reino da Iugoslávia, monarquia criada em 1918 e base da república socialista de mesmo nome, formada após a Segunda Guerra Mundial.
Em 1991, no início da crise que desencadearia na guerra da dissolução da Iugoslávia, a Macedônia declarou independência. Pela primeira vez na história, salvo um período de dez dias em 1903, a Macedônia era uma nação independente.
Mas as tensões permaneceram. A comunidade internacional aceitou prontamente o novo país, denominado República da Macedônia. Com uma exceção, a Grécia, que não gostou da escolha do nome.
Isso porque a maior parte da Macedônia histórica fica no atual território grego. Duas regiões gregas, Macedônia Central e Macedônia Ocidental, fazem fronteira com a ex-república iugoslava, o que alimentou temores de uma possível anexação.
Então, nos anos 1990, tínhamos um novo país independente, chamado Macedônia, que faz fronteira com duas províncias da Grécia. Esse novo país, somado às duas províncias, a um pedacinho da Bulgária e a mais uma província grega, ocupam a área do antigo Reino da Macedônia.
Em 1994, a Grécia impôs um bloqueio comercial à Macedônia, resolvido no ano seguinte com uma solução curiosa. A Macedônia adotou um nome provisório oficial: Ex-República Iugoslava da Macedônia.
A situação se acalmou um pouco, só para esquentar novamente nas décadas seguintes, quando os gregos voltaram a alegar uma suposta ‘apropriação cultural’ na criação da identidade nacional do novo país. Em 2006, o aeroporto da capital, Skopje, foi rebatizado com o nome de Alexandre, o Grande.
A Grécia, que também tem um aeroporto em homenagem ao conquistador, ficou tão furiosa que encerrou os voos diretos entre os dois países vizinhos. Somente no acordo de 2018, com a mudança de nome para Macedônia do Norte, as rotas aéreas foram retomadas. O aeroporto também precisou remover o ‘Alexandre, o Grande’ do seu nome.
Mas o imperador continuou presente na simbologia nacional oficial. Em 2010, enquanto a Grécia chafurdava na crise econômica, a Macedônia vivia um boom na construção civil, que logo tomou contornos nacionalistas.
Skopje ganhou um arco do triunfo, pontes grandiosas, edifícios góticos e uma profusão de estátuas de inspiração grega. A mais impressionante, de 22 metros de altura, na praça central da capital, é uma estátua equestre em homenagem a Alexandre. Não muito longe, há uma outra, de Filipe 2º.
A Grécia alegava que o país vizinho não tem ligações reais com Alexandre. Ele não nasceu nem viveu naquele território e tampouco falava uma língua eslava, como o macedônio moderno.
Porém, isso não são condições absolutamente necessárias para que algo ou alguém seja transformado em símbolo nacional. A história está repleta de exemplos do tipo.
Nem todos na Macedônia do Norte aprovam a transformação de Alexandre no grande herói do país, no entanto.
Slavica Babamova, diretora do museu arqueológico nacional, disse ao jornal ‘The New York Times’ que se sentiu incomodada com a ‘infinidade de estátuas nesse esforço para construir uma identidade nacional’, ainda mais quando o país já tem um passado rico e mais antigo que Alexandre.
Para ela, não é que a Macedônia do Norte não tenha nenhuma ligação com o imperador, mas é que, desde a desintegração da Iugoslávia, os governos têm exagerado nessa associação. Em 2010, o então ministro das relações exteriores do país, Antonio Milososki, resumiu a questão, do ponto de vista do governo, para o jornal ‘The Guardian’:
‘Essa é a nossa maneira de dizer a eles que se danem. Todos nós vivemos em uma área geográfica onde compartilhamos um passado comum, mas nossa atitude em relação à história é inclusiva. A dos gregos é exclusiva. A verdade é que Alexandre, o Grande não tinha passaporte nem certidão de nascimento.’
Mas algum país moderno tem direitos exclusivos sobre um personagem histórico que viveu há dois milênios?
Alexandre da Macedônia ou Alexandre do mundo?
Dificilmente dois países disputariam, no século 21, o legado de um imperador da Antiguidade se os seus domínios se limitassem a uma pequena área ou se suas conquistas já tivessem sido esquecidas nas brumas do tempo. Não foi o caso de Filipe 2º, muito menos de Alexandre.
Antes de Filipe 2º, a Macedônia era um pequeno Estado na periferia do mundo grego. Com ele no trono, o reino derrotou vizinhos e, muito na base do talento diplomático, dominou todo o território que hoje reconhecemos como grego.
Se Filipe 2º liderou uma impressionante expansão em 25 anos, até ser assassinado em 336 a.C., seu filho e herdeiro, Alexandre 3º, se tornou um conquistador global, um dos mais bem-sucedidos e celebrados comandantes militares da história. Ao forjar, em poucos anos, um império que ia da moderna Albânia ao Paquistão, do Egito ao Tadjiquistão, ele se tornou ‘Alexandre, o Grande’, ‘Alexandre Magno’, o rei da Macedônia que também virou rei da Pérsia, faraó do Egito e senhor da Ásia.
O mito grego
O antropólogo Eric Wolf escreveu, em Europa e os Povos sem História (1982), que ‘fomos ensinados, tanto dentro da sala de aula quanto fora dela, que existe uma entidade chamada ‘Ocidente’, e que se pode pensar nesse Ocidente como uma sociedade e civilização independente e em oposição a outras sociedades e civilizações. Muitos de nós até crescemos acreditando que esse Ocidente tem uma genealogia, segundo a qual a Grécia Antiga gerou Roma, Roma gerou a Europa cristã, a Europa cristã gerou a Renascença e a Renascença gerou o Iluminismo, a democracia política e a Revolução Industrial…’
A Grécia estaria, então, na base dessa ‘genealogia’. Mas a Grécia Antiga não é o moderno Estado grego.
Um cidadão de Skopje entrevistado pelo ‘New York Times’ aos pés da grande estátua equestre tem sua razão ao afirmar que o imperador era ‘Alexandre da Macedônia, não Alexandre da Grécia’. A Macedônia foi um de tantos reinos e cidades-Estados que surgiram no atual território grego.
Filipe 2º as unificou, mas depois tanto a moderna Grécia como a Macedônia do Norte foram província de romanos, bizantinos e otomanos. A Grécia contemporânea declarou independência apenas 16 meses antes de dom Pedro 1º declarar o rompimento do Brasil com Portugal.
No século 19, essa jovem e frágil Grécia, a primeira das possessões otomanas nos Bálcãs a se libertar de Istambul, atiçava nos europeus o interesse pelas suas próprias formações como Estados nacionais. Afinal, ela era o berço da dita ‘civilização ocidental’.
Enquanto essa identidade grega era forjada dentro e fora do país, os desdobramentos políticos o mergulharam em uma espiral de golpes de Estado, ditaduras militares e guerra civil. Vimos um pouco disso na história da ilha de Leros.
A Grécia contemporânea foi forjada nesse cenário, tentando fugir da violência étnica e dos orgulhos nacionais espumando raiva para se acomodar no conforto de um passado idealizado e límpido, porém oco como as novas colunas de mármore de Skopje.
O histórico do país moderno, com instituições políticas e econômicas frágeis, o coloca estranhamente em uma posição mais parecida com as repúblicas da América Latina. Ou de seus vizinhos de fama violenta.
O projeto de associar a imagem da Grécia contemporânea à antiga foi tão bem-sucedido que é fácil esquecer que ela é – geográfica, cultural e belicamente – um país dos Bálcãs. Em 2001, o antropólogo Michael Herzfeld sugeriu ‘àqueles que acreditam que a retomada dos conflitos étnicos nos Bálcãs é produto de alguma predisposição inata para uma forma confusa de violência deveriam refletir sobre o fato de que o primeiro Estado-nação da região, que também foi o local de uma das guerras civis mais sangrentas dos Bálcãs, foi concebido como um produto do racionalismo iluminista’.
Foi essa Grécia que vociferou contra as medidas da Macedônia do Norte de, supostamente, ‘se apropriar’ de Alexandre. Um acinte, ainda mais vindo de uma nação eslava, uma ex-república iugoslava e, portanto, socialista.
Justamente pelas raízes eslavas do país, muitos não veem motivo em tamanha celebração em torno de Alexandre. Bisera Kostadinov-Stojchevska, ex-ministra da cultura, declarou que não é uma grande fã do imperador: ‘Não me sinto conectada nem linguística nem cultural nem emocionalmente.’
Já o historiador Dalibor Jovanosvski disse ao ‘New York Times’ não ser fã do nome ‘Macedônia do Norte’, mas acredita que essa condescendência é o preço a se pagar para entrar na UE. ‘Todos sempre pensam que a história pertence somente a eles, que não há uma história compartilhada’, declarou. ‘Mas, nesta parte do mundo, tudo é fluido. Tudo está misturado.’
Os Bálcãs são multiétnicos, e muito disso começou com Filipe 2º e Alexandre. O país que aceitou mudar o próprio nome para Macedônia do Norte continua espremido entre a Grécia, que alega que ele se apropriou indevidamente de seus símbolos nacionais, e a Bulgária, que sequer o reconhece como uma nação com identidade própria.
É o suficiente para que Alexandre, morto em 323 a.C., continue ditando, por meio de estátuas, logradouros e discursos políticos, os contornos daquilo que ele ajudou a misturar, a fronteira entre Ocidente e Oriente.