Kanoe: O Restaurante de São Paulo que Conecta Gastronomia e Histórias

Antes de chegar à concorrida reserva do Kanoe, você recebe uma mensagem perguntando suas restrições alimentares e alergias, como é comum em muitos restaurantes. Mas, curiosamente, também perguntam se você é destro ou canhoto. Esse é só um dos muitos detalhes que mostram que o Kanoe não é apenas um lugar para comer.

Experiência Única

O serviço começa de forma austera, com mais vozes dos comensais do que da cozinha. Um casal assíduo leva um amigo, uma brasileira leva o amigo escocês, um senhor brinda com a namorada, uma jornalista solitária prova o saquê com adição de lúpulo e escuta as conversas alheias.

Após algumas etapas, Tadashi Shiraishi inicia conversas que vão desde a origem dos produtos até detalhes dos talheres, chegando a recomendar os melhores voos para o Japão.

Há luxo, hype e excelente comida, mas também boas histórias no espaço que começa por uma pequena porta e mergulha em uma combinação sóbria de off-white, madeira, verde de uma planta ornamental, vidro ou cerâmica das louças e metal dos talheres.

Toda essa exclusividade discreta levou anos de ensaio para chegar a São Paulo e, hoje, despontar como um dos estrelados Michelin da cidade.

Simpatia e Conexão

A explicação para a simpatia suave – e rara na alta gastronomia – está em um dos princípios da casa: que todos se sintam em casa.

“A gente se conecta com o brasileiro através dessa troca”, revela Tadashi. Mas não somente em sua terra natal isso foi notado. “Nos Estados Unidos, as pessoas gostavam de ir ao restaurante não só por tudo que a gente oferecia, mas também para trocar uma ideia”, lembra.

Não é somente pelo jeito falante de Tadashi, mas por querer criar pontes, conexões e, claro, uma clientela fiel.

“Há clientes que já vieram mais de 20 vezes, que sabem o meu aniversário, eu sei o deles”, conta.

Comer Antes de Cozinhar

Na casa de Tadashi, não se aprendeu a cozinhar, mas a comer, e essa ele considera uma lição essencial.

“Para cozinhar algo gostoso, preciso comer coisas gostosas e isso me leva para essas cozinhas de família. Minha avó só queria alimentar alguém que ela ama. E para mim, o cozinheiro parte disso”, acredita.

Assim como em uma família italiana, os domingos eram dedicados à mesa farta e às reuniões de pais, primos, tios, para os quais a matriarca tinha prazer em cozinhar. E Tadashi, ainda que de olho no videogame que ficava por lá, ajudava a avó a compor o banquete desde o sábado.

Infância e Inspirações

Nascido e criado em São Paulo, o chef de 39 anos, quando menino, via o onigiri servido ao lado do churrasco, uma omelete ao lado de um porco empanado, marmitinhas servidas depois dos jogos de beisebol, esporte popular no Japão e entre imigrantes pelo mundo.

A infância em um colégio japonês, cercado por livros em japonês (sua família tinha uma livraria na Liberdade) e vendo programas infantis em VHS gravadas pelos seus tios da TV estatal japonesa, Tadashi cresceu achando que o acesso à tradição tamanha era algo corriqueiro.

E, aos poucos, sonhando em viver da inspiração que saía das panelas da avó e de Jamie Oliver.

“Na época eu tinha uns 12 anos e ele foi um dos primeiros caras a cozinhar na TV. E cresci vendo ele, pedi pro meu pai assinar TV a cabo pra poder assistir. Então, na adolescência, comecei a ler sobre cozinha e a pensar sobre”, lembra.

Para seus pais, no entanto, uma carreira na gastronomia soava como um “vou ser astronauta” e o que eles mais desejavam era um filho engenheiro.

Prestes a se formar no colégio e sentindo a pressão de passar no vestibular – na USP, claro -, levou coragem para falar ao pai que as ambições estavam dentro dos restaurantes que eles frequentaram a vida toda.

Primeiros Passos na Carreira

De terno e gravata, o menino busca bicos na Liberdade, é rejeitado pela idade, inexperiência e disposição em fazer “o que for” mesmo sem remuneração, “um playboyzinho”, segundo ele mesmo descreve.

Sob olhar atento e silencioso do pai e uma certa ajuda da mãe, consegue uma vaga num rodízio na Vila Madalena, onde percebe que a vida em restaurante é zero glamour e tem um choque de realidade. Mas havia algo maior.

“Insisti ainda assim, porque, apesar de todos os problemas, quando eu tava lá mexendo na comida e servido o cliente, era muito legal”, conta.

No perrengue, mais lições. Da má remuneração ao jantar o que conseguia sugar das espinhas dos peixes, Tadashi também traz de casa a resiliência. “Se os meus colegas comem isso, por que eu vou ficar reclamando da comida? A gente vem de famílias que sobreviveram a guerra”, lembra.

Sem qualquer apoio do pai ou formação em gastronomia, no emprego seguinte, em um restaurante familiar, começa a ver uma carreira no salário de R$ 300, como assistente.

Superação e Crescimento

Para superar a rejeição dos que cozinhavam não por escolha, mas por necessidade, Tadashi se colocou como “pau para toda obra”.

“Alguns poderiam falar que eu tava puxando o saco, mas não. Eu terminava a minha parte e ajudava para aprender. E essa foi uma das fórmulas que eu encontrei, especialmente no início da minha carreira, para crescer.”

Aos 20, deu entrada no primeiro carro e a primeira prova de sucesso para seu pai, sua comunidade, seus colegas e até para si mesmo.

“Não queria que as pessoas colocassem uma dúvida sequer do meu trabalho, que não me julgassem pelo meu passado de um colégio particular, de uma família tradicional, pelos estereótipos”, diz.

O Mundo Pelas Cozinhas

Com o tempo, Tadashi percebeu que a cozinha clássica, com a qual planejava trabalhar estava ou nos restaurantes que frequentava desde criança ou em lugares bem mais distantes – EUA, Europa, Japão. Mas ainda era tempo de mais uma lição.

“Naqueles lugares, eu não tinha como entrar ainda, porque o nível era muito alto ainda, mas me perguntava porque os lugares daqui, onde eu não queria estar, eram tão cheios. Alguma coisa de bom a gente faz aqui. Então eu mergulhei de cabeça e tirei meu julgamento, por exemplo, do motivo de tanta gente comer salmão com trufa e sair feliz.”

Após passar por alguns estabelecimentos em São Paulo, chegou a oportunidade de, finalmente, trabalhar no Japão, em uma escola-restaurante voltada para imigrantes brasileiros desempregados.

“Mas não é porque você tá no Japão que sua vida é mais fácil. Eu era novo, um brasileiro. Eles não me queriam, né? Aí já começa aquela coisa de ‘você acha japonês, mas não é’. Mas eu já sabia a receita: baixar a cabeça e trabalhar horrores.”

Ao mesmo tempo, foi na terra de seus pais, avós e antepassados que Tadashi teve contato com ingredientes, livros e estabelecimentos que só o Japão oferece.

“Num dia de folga, pego um livrinho que minha avó, que já tinha morrido, havia me dado. Chama Sushi Book, meio um mapa de várias casinhas de sushis tradicionais, impresso em 1989. E fui a elas.”

Nas pequenas e inesperadas belezas de uma rotina sozinho, longe dos pais, irmãos, sem tempo para ter um relacionamento, a resiliência o constrói profissionalmente e o faz encontrar explicação para a rigidez do pai, da mãe, do professor de karatê.

“Aí você tem duas escolhas, ou você desiste, ou você se destaca”, acredita.

Após um ano, Tadashi deixa o Japão, volta ao Brasil, trabalha no Kinoshita – “o melhor restaurante de São Paulo”. E não se adapta.

Correndo entre dois empregos, tenta juntar dinheiro para tentar de novo e, mais uma vez, a oportunidade bate à sua porta. Dessa vez, no Matsuhisa, dos mesmos sócios do icônico Nobu de Nova York, mas na Grécia.

“Nobu Matsuhisa é um cara que sempre me inspirou muito, na carreira toda. Falhou várias vezes até construir império que é hoje”, afirma.

Aos 20 e poucos anos, com quase 10 anos de cozinha, enfrenta a mesma desconfiança das cozinhas brasileiras e japonesas. O trabalho que começaria após sair o visto, se inicia na madrugada do dia seguinte à sua recepção – regada a festa, champanhe e ressaca.

“E aí começa um inferno astral gigantesco, porque eu nunca trabalhei tanto nessa vida. E eles tentaram me quebrar todos os dias. Chorava de raiva. Depois de quatro temporadas com eles, no final, foi a melhor experiência profissional da minha vida”, garante.

No dia anterior ao fim do contrato, esperando saber o que faria na volta ao Brasil é avisado que estava convocado para um pop-up. Em Paris.

No ano seguinte, no seu aniversário (13 de julho), conhece Nobu. Passa por Suíça, Alemanha. “E aí chegou uma hora muito difícil. Falei ‘olha, gente, acho que eu vou voltar para o Brasil para abrir um restaurante”.

Primeiro Negócio, Primeira Decepção

Aos 29 anos, em 2016, Tadashi entra na sociedade para o UN. Um ano depois, a deixa a casa.

“Era uma meta que eu tinha, antes dos 30 abrir o meu primeiro restaurante. Então foi bom porque eu aprendi que tipo de sócio eu precisava, o que eu realmente queria da minha vida como profissional, que tipo de cozinha eu quero praticar”, afirma.

Declaradamente rígido e muito focado em resultados, Tadashi olha para trás e afirma que “falava muita groselha, tinha raiva de um monte de coisas” e que não tinha a maturidade necessária para equilibrar suas referências e o ofício de liderar.

Agora era a vez de explorar os Estados Unidos. Entre San Diego, Las Vegas, escolhe Miami para começar seu sucesso Hidden. Oito lugares, cozinha do jeito que o chef sonhava e uma comunidade faminta por novidades.

“O Hidden salvou a minha vida, era o que eu queria ter feito no UN e sair brigado com os sócios foi duro, a repercussão de tudo me deixou mal”, recorda.

Em 2019, com projetos de outro restaurante e de volta ao Brasil para renovar o passaporte, passa uma temporada no Kinoshita e em 2020 a pandemia o força a pensar que Brasil deveria ser uma possibilidade mais uma vez.

Ao lado da esposa, sócia e porto-seguro Patrícia Bianco, vê o incentivo para mostrar o que o meio mundo já tinha provado.

Em abril, surge o Hako.Bako. Em 12 de junho, sai a primeira encomenda do take-out de comida japonesa. Em 2022, a versão física do sonho antigo: Kanoe, nome em homenagem à batchan (avó), sua primeira inspiração culinária.

Nova Chance em Casa

“Até então, eu não entendia o quanto eu precisava do Kanoe no Brasil e não nos Estados Unidos. Porque aqui era o único lugar que eu não tinha deixado algo de relevante”, conta.

Hoje, Tadashi cuida de todo o ecossistema do restaurante que ele chama de “meu mundo”. O tom de voz mudou, a proximidade com a equipe aumentou e a rigidez deu lugar a uma seriedade calma, eficaz e evidente a quem senta no disputado balcão.

O resto é uma história que o público da boa mesa se não conhece, está curioso para conhecer, ainda que o omakase tenha sido amplamente alardeado como o mais caro do Brasil (R$ 1400).

“Restaurantes como o Kanoe têm que existir, assim como os simples, casuais e acessíveis têm que existir. Que façam omakases porque é hype. Vai acessibilizar e as pessoas vão deixar de ter julgamentos”, diz.

Ao mesmo tempo, defende que seu restaurante de 8 lugares é o que permite sua expressão da forma mais próxima do ideal – “atende a minha expectativa. E a minha expectativa é muito alta”, afirma.

“O mais legal é quando as pessoas vêm achando que é só um restaurante e encontram aquele espaço em que se conectam com outras pessoas. E aquilo vira não só um jantar, mas um programa muito legal de você conhecer gente, além de você poder estar em um lugar que foca na entrega, não tem ruído”, descreve.

Estrelados e Unidos

Agora detentor de uma estrela do Guia Michelin, Tadashi fez questão de subir ao palco da cerimônia em maio ao lado da esposa.

“Eu precisava que o mundo inteiro soubesse que o Kanoe só existe porque a Patty existe”, se derrete.

As expectativas e nervosismo do casal e da equipe do restaurante se justificavam: havia expectativa pela estrela desde o ano anterior, com o retorno do guia a São Paulo e Rio depois de hiato na pandemia.

“Quando não veio em 2024, fez um abismo. Ela viveu um período de luto muito longo. Só que ela guardou para ela. É uma coisa que só a gente sabe. Esse ano ela me fez botar o smoking de novo”, ri.

Se para a companheira o baque foi inesperado e frustrante, para Tadashi, mais uma vez, veio como aprendizado:

“Foi importante a gente ter perdido, porque como sócio dela e marido dela, eu precisava que ela entendesse que independentemente do Michelin, o que a gente faz é muito bonito.”

Fonte: https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2025/08/23/quem-ve-so-luxo-nao-viu-muito-corre-a-trajetoria-de-tadashi-shiraishi.htm

Dá uma olhada aqui também

Você pode gostar